Câmara discute mudanças na legislação, incluindo fim da lavagem como 'crime autônomo'. Oficial de ligação do Brasil na Europol, Ricardo Saadi, participou de audiência nesta sexta. O oficial de ligação do Brasil junto à Polícia Europeia (Europol), delegado Ricardo Saadi, afirmou nesta sexta-feira (27) que uma eventual mudança na lei de lavagem de dinheiro pode "matar o verdadeiro objetivo" das investigações.
Saadi se referiu à criação de um novo ponto na legislação, que passaria a exigir a condenação pelo "crime antecedente" para que a lavagem de dinheiro fosse comprovada.
Hoje, a lei considera a lavagem de dinheiro um crime "autônomo", no jargão jurídico. Ou seja: o infrator pode ser denunciado pela lavagem, mesmo se o crime que gerou esse dinheiro ilegal ainda não tiver sido julgado.
"Se quiser matar o verdadeiro objetivo da investigação da lavagem, é só colocar ela dependente do julgamento do crime antecedente", declarou.
O delegado da Polícia Federal participou de uma audiência na comissão da Câmara dos Deputados, composta por juristas, que estuda mudanças na legislação sobre lavagem de dinheiro.
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Saadi foi superintendente da Polícia Federal (PF) do Rio de Janeiro e coordenador por sete anos da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA).
Em agosto de 2019, a superintendência do Rio esteve no centro da primeira crise pública relacionada à PF entre o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, e o presidente Jair Bolsonaro.
Sem o conhecimento da cúpula da PF, Bolsonaro anunciou a troca do superintendente. Em julho desse ano, Saadi foi para a Europol.
O que diz a lei atual
A lavagem de dinheiro ocorre quando o criminoso tenta dar uma aparência de legalidade a recursos cuja origem é ilícita.
"O combate à lavagem serve para evitar evitar que os criminosos possam usufruir dos recursos advindos da prática criminosa e que o dinheiro seja reinvestido nessa prática", explicou o oficial.
Pela lei que trata da lavagem de dinheiro, de 1998, a denúncia desse crime pode ser feita desde que haja "indícios suficientes da existência da infração penal antecedente". O texto esclarece que, apesar disso, não é preciso uma condenação por essa outra infração penal.
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"A denúncia será instruída com indícios suficientes da existência da infração penal antecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor, ou extinta a punibilidade da infração penal antecedente", diz a lei.
A legislação autoriza o juiz, munido desses indícios, a decretar a prisão ou o bloqueio de bens do investigado.
Exemplo internacional
Na audiência desta sexta, Ricardo Saadi usou como exemplo uma norma da União Europeia que permite a apuração da lavagem de dinheiro "sem que seja necessário determinar com precisão qual atividade criminosa gerou os bens, ou que haja uma condenação anterior ou simultânea".
Segundo o oficial, o Brasil "está no meio do caminho", "no local adequado", em comparação com outros países.
"[No Brasil] A denúncia pela lavagem deve conter indícios suficientes do crime antecedente. É claro que, na condenação pela lavagem, vai ter que ser demonstrada no processo a prática do crime antecedente na relação daqueles recursos com a lavagem de dinheiro", afirmou.
"Se você tiver que esperar acabar o processo anterior, esperar uma condenação pelo crime antecedente para iniciar o processo da lavagem. Mais uma vez, do ponto de vista prático, aí esquece, acabou, é melhor até acabar com o crime de lavagem. Do ponto de vista objetivo, de descapitalização da organização criminosa, não vai ter qualquer tipo de eficácia", seguiu.
Impactos econômicos
Saadi também apontou "consequências econômicas" da mudança, já que a flexibilização da lei aumentaria a possibilidade de recursos ilícitos continuarem em circulação.
O especialista afirma que, se os bens dos investigados forem rastreados somente num segundo momento, essas posses dificilmente serão encontradas.
E que, se o crime for cometido em outro país, a Justiça brasileira será obrigada a esperar uma condenação externa para só depois agir. Isso deixaria o Brasil, nas palavras de Saadi, "à mercê do Poder Judiciário de outros países".
"O Brasil se tornaria uma espécie de paraíso para algumas organizações criminosas trazerem recursos da prática criminosa em outros países. Tráfico de armas, de drogas e outros crimes que foram praticados em países que eventualmente não tenham Poder Judiciário rápido, efetivo, vão poder tranquilamente utilizar aqueles recursos no Brasil. Porque o Brasil não vai poder, como hoje pode, iniciar um processo de lavagem de dinheiro baseado em indícios suficientes da prática do crime antecedente", disse.
Saadi ainda afirmou que não combater o crime de lavagem pode afetar a "competitividade do mercado".
"Quem está lavando dinheiro, não está objetivando o lucro na atividade que está fazendo. E isso tira a competitividade do mercado. Aquele que trabalha da forma correta, que paga seus impostos, acaba sendo esmagado por aquele outro restaurante que está aceitando até o prejuízo", concluiu.