Em meio a guerras e desastres naturais, os pais alemães deram este presente aos filhos para celebrar o início das aulas — e transmitir uma mensagem surpreendentemente poderosa. Após a divisão da Alemanha, as famílias continuaram a tradição do cone escolar, como estas crianças do 'setor americano' de Berlim em 1952
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Alguns meses antes de Jara, de seis anos, começar a estudar em Londres no ano passado, sua avó na Alemanha estava preparando uma surpresa especial para a neta: um "Schultüte" gigante, ou "cone escolar", uma espécie de cornucópia de cartolina que as crianças alemãs tradicionalmente recebem no primeiro dia de aula.
Na família de Jara, assim como em muitas famílias alemãs, todas as gerações honraram esta tradição até onde podem ser lembrar. Nem a pandemia, tampouco a questão prática de como transportar um presente enorme para Londres, que corre o risco de amassar, iriam quebrar esta corrente.
À primeira vista, os cones escolares alemães aparentam ser um presente muito simples: um grande cone de cartolina decorado, repleto de doces, artigos de papelaria e brinquedos.
Mas, nos últimos dois séculos, eles adquiriram um lugar único na cultura alemã, como um presente muito amado e profundamente simbólico de uma geração para a outra —um presente que carrega um poderoso significado cultural e psicológico.
Crianças alemães com seus cones na década de 1960
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Pais alemães prepararam cones escolares durante duas guerras mundiais, nos escombros das cidades do pós-guerra e ao longo das décadas em que o país foi dividido.
Nos bons tempos, os cones eram recheados de guloseimas luxuosas; nas horas ruins, com batata, ou até mesmo nada, e o próprio cone seria o presente.
Para muitos alemães, eles são o grande símbolo do início da escola e do ingresso em uma nova fase da vida.
"Para a nossa família, começar a escola não é possível sem um cone escolar", diz Jacqueline, a mãe alemã de Jara, que trabalha em Londres como preparadora física.
"Não consigo me imaginar sem um, é uma forma de adoçar o primeiro dia de aula."
Em sua região natal, a Saxônia, o cone é entregue como parte de uma grande celebração, com uma cerimônia na escola e uma festa em casa.
É algo de que ela sente falta no Reino Unido. "Aqui, o primeiro dia de aula é apenas o primeiro dia de aula."
Bettina Nestler, cuja família é dona da Nestler Feinkartonagen, a maior fabricante alemã de cones escolares, descreve essas festividades de entrada na escola como "um pequeno casamento".
Na Saxônia, onde fica a sede da Nestler, eles são particularmente exuberantes e planejados com até um ano de antecedência.
O cone em si, conhecido em algumas regiões como "Zuckertüte" ("cone de açúcar"), é encomendado já em janeiro, para o início das aulas em setembro.
Acredita-se que a Saxônia, no leste da Alemanha, seja onde começou o costume de dar cones.
Versões variadas
Em uma das primeiras referências à tradição, o filho de um pastor na Saxônia lembra que recebeu "um cone de açúcar do professor" em seu primeiro dia na escola em 1781.
Naquela época, os cones eram simples, pequenos sacos de papel recheados com passas ou outras frutas secas.
Hoje em dia, eles podem medir até 85 cm e ser decorados com imagens de carros, unicórnios ou astronautas, junto a luzes de LED piscantes e até mesmo botões que produzem relinchos ou rugidos quando pressionados.
Mas, seja um saco de passas ou um cone supermoderno, o significado essencial permanece o mesmo.
"O cone escolar é um rito de passagem tradicional", diz Christiane Cantauw, historiadora e especialista em folclore da Comissão de Pesquisa da Cultura Cotidiana na Vestfália, no oeste da Alemanha.
"A criança está deixando os primeiros anos para trás e entrando na escola, e esse fato é levado muito a sério na Alemanha. E a tradição deixa isso claro."
Além disso, o cone marca um novo vínculo especial: "Com a transição para a escola, a criança se distancia um pouco da unidade familiar", diz Cantauw.
"E com o costume de dar cones, a família cria uma reconexão e transmite que 'sim, agora você é uma criança em idade escolar, mas ainda faz parte da nossa família. Apoiamos e acompanhamos você nesta nova caminhada, assim como fizemos antes.'"
Ela compara o costume a outros ritos de passagem, como cerimônias de formatura ou casamentos, que existem em todo o mundo:
"A comunidade afirma claramente: 'Ok, todos nós entendemos, você ainda pertence a nós, mas agora você tem esta nova função'. "
Para alguns, a memória desse vínculo especial dura a vida toda.
Hans-Günter Löwe, um professor aposentado em Hamburgo, cresceu nas ruínas da Alemanha do pós-guerra. Ele ainda se lembra de brincar nos escombros de casas bombardeadas.
Uma foto tirada em seu primeiro dia de escola, em 1949, revela um grande esforço para dar alguma aparência de normalidade.
"Minha mãe costurou para mim uma jaqueta com retalhos de tecido, estou usando meias de tricô até o joelho e botas de segunda mão. E estou segurando um cone escolar feito em casa decorado com papel-alumínio brilhante. De alguma forma, minha mãe conseguiu fazer um", diz ele.
Os 'cones escolares' alemães refletem como a paternidade mudou. Na década de 1950, quando a economia do pós-guerra se recuperou, virou moda comprar, em vez de fazer cones à mão
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"De alguma maneira, ela deve ter negociado o papel alumínio, a cartolina, ela realmente tentou resgatar esse cone. E ela fez isso sem eu perceber, embora morássemos em um apartamento pequeno e apertado."
Depois de uma pausa, ele acrescenta baixinho, quase para si mesmo: "Ela deve ter feito isso enquanto eu estava dormindo."
Löwe coleciona dezenas de cones escolares antigos, que agora se encontram em um museu, assim como fotos que documentam a tradição. Ele escreveu ainda um livro sobre a história do costume — incluindo algumas lembranças um tanto pungentes dos cones escolares.
"O dia tão temido amanheceu", escreveu um memorialista alemão do século 18, citado no livro de Löwe, sobre seu primeiro dia de escola.
"Equipado com um novo livro didático, um grande cone de passas e a mensalidade escolar de seis moedas, comecei o caminho amargo [para a escola], escoltado por uma empregada, e derramando lágrimas quentes."
Rito de passagem
Assim como agora, começar na escola pode inspirar sentimentos de ansiedade nas crianças.
De acordo com uma revisão de estudos sobre as transições da primeira infância, os rituais podem ajudá-los a lidar e vivenciar o momento de mudança como algo positivo.
Quando bem administradas, essas transições podem ser "pontos de inflexão importantes na vida das crianças" e "oferecer desafios e oportunidades de aprendizagem e crescimento em vários níveis", argumentam os autores da revisão.
Embora a revisão não mencione ritos específicos de ingresso na escola, muitas sociedades marcam o grande dia de alguma forma.
No Reino Unido, as famílias normalmente preparam as crianças comprando uniforme escolar e um par de sapatos novos, enquanto no Japão, as crianças recebem mochilas escolares tradicionais conhecidas como randoseru.
Na Alemanha, os cones tendem a evocar fortes sentimentos de nostalgia nos adultos. Mas, como documenta o livro de Löwe, eles também refletiram a história tumultuada e violenta do país.
Em uma foto tirada durante a Primeira Guerra Mundial, uma menina segura um cone escolar em uma das mãos e uma granada de mentira na outra, com a inscrição de uma mensagem desejando coragem e força.
As crianças enviavam fotos de si mesmas com seus cones escolares para seus pais no campo de batalha. Na era nazista, alguns cones apresentavam suásticas.
Após a Segunda Guerra Mundial, quando a Alemanha foi dividida na República Democrática Alemã (a chamada Alemanha Oriental, socialista) e na República Federal da Alemanha (a Alemanha Ocidental, capitalista), surgiu uma nova cisão.
Na Alemanha Ocidental, os cones eram redondos e, no lado Oriental, mais angulares. Décadas após a reunificação, essas diferenças permanecem, junto com outras distinções sutis entre os cones da Alemanha Oriental e Ocidental.
Os alemães ocidentais são mais propensos a fabricar de forma artesanal seus próprios cones, por exemplo, enquanto os alemães orientais preferem versões compradas em lojas — um possível legado das relações de gênero nas duas Alemanhas.
Durante os anos de divisão, as mulheres que eram mães na Alemanha Oriental tendiam a voltar ao trabalho rapidamente, enquanto as mães da Alemanha Ocidental eram mais propensas a ficar em casa, uma diferença que persiste até hoje.
"No leste, os pais saíam para trabalhar, eles não tinham tempo para fazer artesanato", explica Bettina Nestler, fabricante de cones escolares.
Para sua família, os cones e sua história carregam um significado particularmente profundo, entrelaçado a memórias de perda e resiliência.
"O que o cone escolar significa para nós — essa é uma questão muito emotiva", suspira Nestler, cujo avô começou a empresa em 1953.
Em 1972, quando ele estava prestes a levar a família para passar férias em Praga, recebeu o telefonema que temia. A família estava prestes a ser expropriada, e a empresa nacionalizada.
Da noite para o dia, eles perderam tudo, e seu avô se tornou um trabalhador comum na empresa que outrora administrava.
Ele ainda se dedicou ao trabalho, produzindo cones com motivos de contos de fadas, personagens de desenhos animados da Alemanha Oriental — e, às vezes, fotos dos Jovens Pioneiros, uma organização socialista da juventude.
Nestler conta que ele estava convencido de que um dia a empresa seria devolvida a eles. E, de fato, foi.
Cinco anos após sua morte, o Muro de Berlim caiu e, um ano depois, em 1990, a Alemanha se reunificou. E a família de Nestler recuperou a propriedade.
Nestler cresceu ao lado da fábrica, em meio ao cheiro de cola. Da janela de seu quarto, ela podia ver a sala de empacotamento, onde os cones coloridos rolavam em uma linha de montagem.
Ela diz que orgulho de ter seguido os passos de seus ancestrais no negócio: "Fazemos parte de uma fase muito especial da vida de uma pessoa. O início da escola é um passo extremamente importante."
Hoje, sua empresa atende a uma nova tendência: o individualismo. Os pais podem solicitar cones personalizados impressos com o nome de seus filhos ou até mesmo um modelo único baseado em um desenho pessoal.
Isso não existia na infância socialista de Nestler: "Era um planejamento central, com dois a três novos designs por ano, e pronto."
Cantauw, a especialista em folclore, explica que o design do cone remete à situação econômica da Alemanha e também às ideias alemãs sobre a boa criação dos filhos.
Nos anos 1950, quando a economia se recuperava dos amargos anos do pós-guerra, "era uma questão de mostrar que dava para comprar um belo cone, com papel brilhante e assim por diante", diz Cantauw.
"Era um símbolo de: 'Estamos investindo no seu futuro, começando com o seu cone escolar'."
Seu próprio cone, que recebeu em 1970, era um exemplo clássico dessas décadas: vermelho escuro, brilhante e comprado na loja, com um relógio, uma maçã "e provavelmente doces" dentro.
Mas agora, para os pais que cresceram na relativa prosperidade da década de 1980 e que têm carreiras de sucesso, "o presente é o tempo".
Especificamente, o tempo dedicado à elaboração de um cone escolar: "Os pais mostram aos filhos que estão investindo tempo, que estão investindo no cuidado."
Em 2016, a revista alemã Der Spiegel condenou a "a loucura do 'faça você mesmo' para o primeiro dia de aula", argumentando que os pais estavam sob um "novo tipo de pressão de performance" para criar o cone perfeito, que era visto como um "barômetro do amor".
Em momentos de crise, no entanto, essa fabricação caseira de cones pode se tornar um superpoder.
Manuela Schmidt, terapeuta da cidade de Wachtberg, mora perto de uma área no oeste da Alemanha que foi devastada pelas enchentes no último verão. Quando soube que algumas crianças perderam seus cones escolares nas inundações, ela se ofereceu para fabricar cones novos com um grupo de voluntários. Dezenas de famílias entraram em contato com ela.
"Como psicoterapeuta, sei como é importante dar uma sensação de estrutura e estabilidade após um evento terrível como esse", diz Schmidt.
Os cones feitos à mão, decorados com unicórnios, bombeiros e planetas, ofereciam uma sensação de esperança.
"Mostrou às crianças e suas famílias que haveria um amanhã, que a vida continuaria, mesmo depois dessa catástrofe."
Na própria família de Schmidt, os cones escolares são preciosos. Sua sobrinha Lillian, de 8 anos, mostra orgulhosamente o dela em uma videochamada: azul-celeste, com um arco-íris, uma árvore, uma lua e estrelas.
Ela o guarda como uma recordação. "É uma memória do meu primeiro dia de escola, que foi muito especial."
Quanto a Jara, a estudante de Londres, o cone enviado da Alemanha era tudo que ela esperava.
Sua avó comprou um modelo customizado em uma loja de artesanato, feito para caber no comprimento diagonal de sua mala. Era azul turquesa e decorado com uma sereia, e quase tão grande quanto a própria Jara.
Jara achou absolutamente mágico: "Fiquei tão feliz que até levei (o cone) para dormir comigo."