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Matrix: a origem e o polêmico legado do filme no mundo real


18 anos depois da estreia do último filme da trilogia, será lançado um novo filme Matrix nos cinemas. Antes disso, relembramos os impactos das obras anteriores na sociedade. Neo e Trinity em cena em que voltam da simulação em Matrix no novo filme

Warner Bros via BBC

"Não conheço o futuro. Não vim aqui para te dizer como isso acabará, vim para dizer como começará".

Essa fala foi dita no final do filme Matrix em 1999, quando Neo, personagem interpretado por Keanu Reeves, emitia um alerta às máquinas que controlavam o mundo, após descobrir que a humanidade estava presa a uma realidade simulada.

O filme, que foi lançado quando o mundo estava próximo da revolução da internet, e às vésperas do novo milênio, aproveitou o desenvolvimento tecnológico da época e levantou perguntas importantes sobre a web, a consciência e o controle social.

18 anos depois do fim da trilogia original, o quarto filme da saga, Matrix Resurrections, chega aos cinemas.

Leia também: g1 já viu - 'Matrix Resurrections' é melhor que continuações anteriores, mas não chega aos pés do 1º

Diante disso, analisamos o que permanece como legado do filme, que para alguns é uma espécie de referência profética.

"O deserto do real"

As irmãs criadoras de Matrix, Lana e Lilly Wachowski, basearam seu mundo distópico na obra do filósofo francês Jean Baudrillard.

Muito antes de Reeves usar o sobretudo e os óculos escuros de Neo, ele foi convidado a ler o livro Simulacros e simulação, publicado pelo estudioso em 1981.

Na obra, Baudrillard reflete sobre um "deserto do real", um mundo onde a verdadeira realidade foi substituída pelas ilusões do capitalismo.

O filme concretizou esse conceito no líder rebelde Morpheus, quando ele usa a frase para apresentar a Neo as ruínas do mundo exterior.

Para Baudrillard, não havia como escapar da simulação, mas as Wachowskis ofereciam esperança na "promessa de um verdadeiro mundo natural 'desconectado' e separado da matrix", explica o professor Richard Smith, editor do Dicionário Baudrillard.

O impulso às ideias de Baudrillard com a sua narrativa é um dos primeiros legados do filme. Mas a influência da película se estende a situações e expressões cotidianas. Abaixo, conheça alguns exemplos disso:

1. A pílula vermelha

Uma das cenas icônicas de Matrix é quando Morpheus oferece uma pílula azul ou vermelha a Neo (então vivendo como o hacker Thomas Anderson).

Se Neo tomasse a azul, ele voltaria à vida como Anderson, sem saber da matrix, o mundo simulado criado para escravizar secretamente a humanidade. Já a pílula vermelha teria efeito oposto e lhe mostraria a realidade e ele teria conhecimento sobre a tirania das máquinas.

Para o professor Smith, a narrativa do filme evoca a alegoria das cavernas de Platão, onde os prisioneiros acorrentados em uma caverna "confundem as sombras na parede com a realidade".

Como Morpheus diz: "Matrix é o mundo que foi colocado sobre os seus olhos para cegá-lo da verdade". A cena da pílula "incita os seres humanos a se libertarem do mundo das aparências", diz Smith.

Mas, com o passar do tempo, a metáfora da pílula vermelha do filme foi sendo alterada por motivos muito distantes de seu significado original.

Por exemplo, a ideia foi adotada por grupos misóginos da internet, em particular o movimento incel, composto por homens supremacistas que criticam a liberdade sexual das mulheres e o feminismo.

Entre essas comunidades da internet se destaca um fórum do Reddit chamado TheRedPill (TRP), que foi lançado em 2012 com o objetivo de proporcionar aos homens uma "estratégia sexual" para derrotar aquilo que descrevem como uma "cultura feminista" manipuladora que empodera somente as mulheres.

Em 2018, o Reddit colocou o fórum em "quarentena" após um aviso de conteúdo que o tornava acessível somente por links diretos. Nessa época, havia mais de 400 mil seguidores no TRP.

A filosofia da pílula já foi movida para fora da internet com consequências fatais. Antes do massacre de Plymouth, na Inglaterra, o autor do crime publicou um vídeo no Youtube no qual fazia referência a consumir "uma overdose de pílulas pretas", um termo interno da comunidade incel que leva ao extremo o significado niilista da pílula vermelha.

Para a jornalista e escritora Sophia Smith Galer, as consequências offline da teoria da pílula vermelha mostram como ela se converteu em um conceito equivocado adotado como fuga de frustrações da vida cotidiana.

2. "Liberte a mente"

A ideia de "libertar a mente" explorada pela teoria da pílula vermelha está entrando na política atualmente. Isso ocorre principalmente nos movimentos populistas modernos de extrema direita, que se posicionam como contra o sistema.

A filosofia da pílula vermelha se transformou entre militantes da extrema direita como um "verbo", em razão do hábito de atacar o multiculturalismo, a globalização e a imigração, como disse o apresentador Danny Leigh.

Alimentada pela desconfiança no governo, na mídia e no status quo, a extrema direita foi impulsionada para a principal corrente da política ocidente pelo ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump e seus apoiadores.

A própria filha dele, Ivanka, então principal assessora da Casa Branca, mencionou o multimilionário Elon Musk no Twitter para dizer que ele teria "tomado" a pílula vermelha. O tuíte representou o oposto do significado da pílula vermelha de Morpheus. segundo o autor James Ball.

"No filme, tomar a pílula vermelha é aceitar uma verdade diferente e espantosa em vez de permanecer em um engano cômodo", comentou.

"E, ainda assim, tomar a pílula vermelha como é apoiado pelos grupos da extrema direita, é aceitar um pensamento em um grupo vil, mas confortável, se adaptar às suas ideias preconcebidas e ver o mundo em uma estrutura que se adapte a você".

Lilly Wachowski demonstrou indignação ao responder secamente à publicação de Musk e Ivanka com uma frase ofensiva.

A matrix é construída por um código de computadores

Warner Bros via BBC

Enquanto isso, o ator Hugo Weaving, que interpretou o Agente Smith na trilogia Matrix, também disse que ficou "desconcertado" com a mudança que fizeram na mensagem do filme. "Isso apenas mostra como as pessoas não leem abaixo das superfícies", disse ao The Daily Beast.

3. A pós-verdade

O fato de que agora é tão fácil se trancar em uma câmara de ressonância online, onde nossas opiniões são reafirmadas e é um espaço desprovido de opiniões equilibradas, levou à afirmação de que vivemos na era da "pós-verdade".

Esse termo foi até declarado como a palavra do ano pelo Dicionário de Oxford após o Brexit e a campanha presidencial nos Estados Unidos em 2016.

Aplicativos de mensagens e redes sociais ajudaram esse clima a florescer, promovendo notícias falsas e o uso de algoritmos que constroem uma versão da realidade adaptada aos nossos gostos.

Um relatório sobre o ecossistema de notícias digitais, publicado pelo Instituto Reuters neste ano, descobriu que embora o público valorize cada vez mais a verdade, apenas 44% acreditam nas notícias que leem.

Plataformas como Instagram e TikTok atraem cada vez mais jovens, mas muitas vezes oferecem conteúdo de opinião ou vinculado a determinadas personalidades, sem antes verificar os fatos, acrescenta o estudo.

Em conjunto, isso pode proporcionar um terreno fértil para uma espiral de teorias da desinformação e teorias da conspiração. Isso significa que o debate da pílula vermelha e azul está desaparecendo e ameaçando se transformar em uma pílula roxa roxa uniforme de preconceitos e desconfiança.

4. Vivemos atualmente na matriz?

Além de mudar nossas percepções sobre a verdade, nossa interconectada e crescente presença digital reflete elementos de Matrix que pareceriam pura ficção científica quando o filme foi lançado.

Nossa disposição, tácita ou não, de compartilhar informações pessoais e aceitar monitoramento por meio da tecnologia, desde aplicativos de celulares a ferramentas de aprendizado por meio de máquinas, como alto-falantes inteligentes, nos permite traçar um quadro detalhado das nossas vidas e nossos hábitos.

O escândalo de dados Cambridge Analytica mostrou como essas informações podem ser usadas para influenciar eleitores em vários sistemas políticos.

A sobreposição dos nossos perfis digitais e a vida real está aumentando cada vez mais por meio das novas tecnologias de realidade virtual, que fazem referência a como os rebeldes se conectam e desconectam da simulação no filme.

O Facebook anunciou recentemente planos a longo prazo para criar um metaverso virtual, o que permitiria viver ainda mais conectado à internet.

Assim como os guerrilheiros de Morpheus hackearam matrix para instalar programas que refletiam diferentes cenários, hoje existem vídeos "deepfake", cópias geradas por computadores que procuram imitar uma pessoa real.

Da mesma forma, o transumanismo, a crença de que os humanos podem superar suas limitações físicas e mentais e "melhorar" seus corpos incorporando tecnologia, também coincide com a maneira como os personagens do filme podem baixar habilidades e aprender a manipular as leis da física dentro da simulação.

Além disso, a relação do filme com a identidade do corpo como algo maleável foi fortalecida por Lily Wachowski, que descreveu esse conceito como uma característica trans durante uma conversa em um programa da Netflix no ano passado.

"Essa era a intenção original, mas o mundo corporativo não estava totalmente pronto", disse a cineasta, que se identifica como uma pessoa transgênero, e revelou esse fato depois do lançamento da trilogia original.

E onde está Matrix quando olhamos para o futuro?

Alguns acreditam que o círculo está fechado. Em 2016, um grupo de físicos sugeriu que é provável que nosso universo não seja real e, em vez disso, é uma simulação gigante executada por um poder superior. Os líderes tecnológicos do Vale do Silício, incluindo o chefe da Tesla, Elon Musk, apoiaram a ideia.

Por mais inverossímil que pareça, isso se encaixa no legado de Matrix. Como Neo advertiu as máquinas em 1999: "Vou mostrar um mundo sem vocês, um mundo sem regras e controles, sem fronteiras e limites... um mundo onde tudo é possível."

G1

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