Lançado em janeiro de 1972, o disco ainda soa moderno pelo ar roqueiro e pelas colagens que, de certa forma, vislumbraram a cultura do sample e do mashup. ? MEMÓRIA – Nos anos 1970, Caetano Veloso legou ao Brasil vários álbuns com repertórios que geraram sucessos ainda remanescentes nas memórias dos seguidores do artista baiano. Basta citar Bicho (1977), Muito – Dentro da estrela azulada (1978) e Cinema transcendental (1979), discos cravejados de joias da canção popular. Contudo, nenhum álbum dessa década se tornou tão cultuado na discografia de Caetano Veloso quanto Transa.
Gravado em Londres no Chappell Recording Studios, com produção musical orquestrada pelo britânico Ralph Mace sob a direção musical do carioca Jards Macalé, Transa foi lançado no Brasil pela gravadora Philips em janeiro de 1972.
O disco chegou ao mercado fonográfico com o toque inovador da capa tripla que permitia que, abertos, capa e encarte formassem um triângulo nas mãos do ouvinte, o tal discobjeto, termo criado pelo ator e diretor de teatro baiano Álvaro Guimarães, mentor (com Aldo Luiz) do ousado projeto gráfico que, no entanto, vinha sem ficha técnica.
Pela capa e pelo encarte, o ouvinte de Transa jamais saberia que o álbum foi gravado em 1971 com banda formada por Áureo de Souza (bateria), Moacyr Albuquerque (1945 – 2000) (baixo), o mencionado Jards Macalé (violão e guitarra) e Tutty Moreno (percussão), além da participação de jovem carioca de 22 anos, Angela Maria Diniz Gonsalves, responsável pelo toque da gaita na gravação sedutoramente pop de Nostalgia (That's what rock'n roll is all about), música de Caetano Veloso alocada no fecho do disco – colaboração que seria o marco zero da trajetória profissional dessa carioca que ficaria conhecida a partir de 1979 como Angela Ro Ro.
Motivo de irritação para Caetano Veloso, a omissão da ficha técnica na edição original de Transa era de fato imperdoável porque muito do valor do disco reside na interação do cantor e compositor com os músicos, responsáveis pelos arranjos. Exilado na capital da Inglaterra desde 1969, Caetano tinha absorvido mais informações do rock no período em Londres e deglutiu essas informações ao longo das sete músicas que compõem o repertório quase todo autoral e então inédito de Transa.
O disco tem vibe roqueira, como é perceptível na gravação de Nine of out ten (Caetano Veloso, 1972), música que menciona o reggae no verso inicial e cita musicalmente no início e no fim do arranjo – através do sutil toque do baixo de Moacyr Albuquerque – o então emergente gênero musical jamaicano que Caetano conhecera na Portobello Road, rua de Londres em que se podia ouvir reggae.
Esse ar roqueiro fez com que, 34 anos depois de Transa, o público do artista conectasse o disco de 1972 de forma quase instantânea ao aclamado e então recém-lançado álbum Cê (2006).
Na arquitetura de Transa, Caetano captou a efervescência roqueira do universo pop de 1971 e a mixou com as referências do artista no mundo da MPB, especialmente as da Bahia natal.
Toda a afro-brasilidade do estado mais negro do Brasil emerge no horizonte de Triste Bahia (Caetano Veloso sobre poema barroco de Gregório de Mattos, 1972), faixa que roça os dez minutos entre citações de afoxé e do samba de roda do Recôncavo.
Menos melancólico, sombrio e interiorizado do que primeiro álbum londrino do cantor e compositor, Caetano Veloso (1971), Transa parece vislumbrar a cultura do sample e do mashup tal a quantidade de citações e referências costuradas no repertório bilíngue, escrito em português e inglês.
Em Transa, Caetano fala do Brasil sob ótica universal. A influência perene do então recém-dissolvido grupo The Beatles salta explícita na citação nominal ouvida no início da longa estrada pavimentada em It's a long way (Caetano Veloso, 1972) com reprodução de trechos de A lenda do Abaeté (Dorival Caymmi, 1948) e do afro-samba Consolação (Baden Powell e Vinicius de Moraes, 1963).
Só que, em Transa, Caetano Veloso lembra que, desde antes de o samba ser samba, o Brasil foi parido com lágrimas claras sobre as peles escuras. “Nasci lá na Bahia / De mucama com feitor / O meu pai dormia em cama / A minha mãe no pisador ”, rima o cantor na música que abre o álbum, You don't know me (Caetano Veloso, 1972), citando versos de Maria Moita (1964), tema da bossa então já engajada de Carlos Lyra com Vinicius de Moraes (1913 – 1980).
Detalhe luxuoso: a gravação de You don't know me ostenta vocais de Gal Costa, cantora que em 1971 tinha ido a Londres visitar os amigos Caetano e Gilberto Gil no exílio forçado pelo governo militar que amordaçava o Brasil desde 1964 e, sobretudo, a partir de dezembro de 1968. Lembrança viva do país que latejava na memória de Caetano, o samba está entranhado em boa parte dos 37 minutos de Transa, álbum de som eletrificado, mas assentado sobre o baticum afro-brasileiro.
Única música de lavra alheia no repertório, o samba Mora na filosofia (Monsueto Menezes e Arnaldo Passos, 1955) ressurge como um transamba, sem a ênfase interpretativa da gravação feita por Maria Bethânia em 1965, sete anos antes de Transa, e do registro da intérprete original da composição, a já centenária Marlene (1922 – 2014).
Há células rítmicas de samba inclusive em Neolithic man (Caetano Veloso, 1972), faixa com alta dose de experimentação que já sinalizava as dissonâncias do álbum posterior Araçá azul (1973), o primeiro disco gravado em estúdio por Caetano após a volta ao Brasil em 1972.
Relançado em CD em 2012, em edição comemorativa de 40 anos que apresentou (exemplar) remasterização feita no estúdio Abbey Road em Londres pelo engenheiro de som Steve Hooke, edição com direito à ficha técnica e ao discobjeto adaptado para o formato de CD, Transa completa 50 anos em 2022 sem envelhecer.
O disco impacta mais pelo conjunto da obra do que pelas músicas em si. E, talvez por isso mesmo, Transa, disco de banda, continue sendo objeto de culto cinco décadas após o lançamento original em janeiro de 1972.