? ANÁLISE – É curioso que Elis Regina (17 de março de 1945 – 19 de janeiro de 1982) tenham partido em um rabo de foguete há 40 anos no dia em que Nara Leão (19 de janeiro de 1942 – 7 de junho de 1989) fazia 40 anos de vida desafiadora de padrões comportamentais e musicais.
Na transversal do tempo, essas cantoras inimigas – na vida cruzada pela paixão por Ronaldo Bôscoli (1928 – 1994), mas não na música abraçada por ambas com a mesma ideologia e a mesma paixão pelo canto das liberdades – têm trajetórias convergidas postumamente nesta quarta-feira, 19 de janeiro de 2022. O dia do 80º aniversário de nascimento de Nara é o dia do 40º aniversário de morte de Elis.
Foram-se os corpos, ficaram as almas e as obras de duas cantoras afinal cheia de afinidades no repertório povoado por músicas de Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994) e de compositores da MPB projetada a partir de 1965 na plataforma incendiária dos festivais da canção. MPB, diga-se, na qual as vozes de Nara e Elis estão enraizadas desde a gênese desse gênero dominante na mídia e nas playlists até o fim dos anos 1970 em um Brasil que se via como o país do futuro.
O futuro se tornou presente sem esse Brasil sonhado e, hoje, Elis e Nara personificam as saudades desse Brasil que se via com um futuro. Um Brasil repleto de rachaduras na estrutura social alicerçada com desigualdades, racismo, hipocrisias e preconceitos diversos. Mas, até mesmo para lutar contra tudo isso, tendo o canto como arma, esse país tinha trilha sonora inigualável, pautada por música popular de alta qualidade que ombreava com a canção norte-americana em beleza e refinamento.
Elis e Nara se foram cedo demais – aos 36 e aos 47 anos, respectivamente – antes do desmonte dessa cultura musical que hoje resiste às margens, em nichos subterrâneos de produção e consumo, soterrados pela massa pop funk sertaneja que impera no mercado comum da vida humana.
Cantoras de apurado senso estético e faro para avalizar compositores em busca de vozes que os projetassem, ambas deixaram obras com as quais futuras gerações ainda hão de se maravilhar, embaladas por séries documentais como a aclamada e recém-estreada O canto livre de Nara Leão (Globoplay) e como a que está sendo produzida sobre Elis para a plataforma HBO.
Essas obras estão imortalizadas em discos disponíveis em edições digitais nos aplicativos de músicas ou em CDs e em LPs encontrados no garimpo dos sebos que ainda resistem, desafiando a digitalização do acervo fonográfico brasileiro.
Assim como do luar poetizado por Gilberto Gil, compositor presente nas discografias dessas duas grandes cantoras, de Elis e Nara já não há mais nada a dizer. A não ser que a gente precisa ouvir e ver (em documentários e em registros de shows) Elis e Nara.
Uma cantora teve voz volumosa que amplificou um Brasil grandioso que passou pelo mesmo fio de voz da outra cantora que, afinal, se revelou com a mesma dimensão da colega com quem não se dava, mas com quem terminou afinada na transversal do tempo que sempre se encarrega de pôr cada um no devido lugar. Por isso mesmo, um país que traz na memória musical Elis Regina e Nara Leão ainda há de ter um futuro...