Cientistas da UFJF contaram ao g1 como conquistaram ascensão profissional no setor, predominantemente masculino. Imagem de arquivo mostra mulher cientista
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“Não podemos parar de lutar, no bom sentido, no dia a dia, na escola, no trabalho, na rua, em casa. Então qual é o meu recado? Força, meninas!!! Um passo de cada vez e sempre em frente”.
Este foi recado da pesquisadora e professora Maria José Valenzuela Bell, para todas as mulheres no Dia Internacional das Mulheres, comemorado nesta terça-feira (8). O g1 conversou também com a pesquisadora Dra. Michele Munk e com Danielle Teles da Cruz, professora e ouvidora especializada em ações afirmativas na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). As cientistas falaram sobre os desafios da profissão e do gênero feminino. Confira.
Pesquisadora de Juiz de Fora parabeniza mulheres pelo Dia Internacional da Mulher
Atuação
Pesquisadora da UFJF Dra. Michele Munk
Michele Munk/Arquivo Pessoal
Professora no Departamento de Biologia da UFJF, a pesquisadora Dra. Michele Munk desempenha funções na área de Nanobiotecnologia, que consiste na pesquisa de matérias em escala nanométrica para a criação de novos produtos, processos ou serviços com aplicação na área biotecnológica a fim de beneficiar a sociedade.
“Eu estudo os aspectos toxicológicos de nanomateriais de interesse biotecnológico para o uso seguro e sustentável de produtos contendo nanotecnologia. Atuo ainda no desenvolvimento de biomateriais aplicados à bioengenharia tecidual e medicina regenerativa, visando o reparo, regeneração ou substituição de tecidos lesionados”, explicou.
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Pesquisadora e professora da UFJF, Maria José Valenzuela Bell
Maria José Valenzuela Bell/Arquivo Pessoal
Maria José Valenzuela Bell é professora e pesquisadora da UFJF. É também mãe, filha, irmã, tia, prima, esposa, professora, cidadã e dona de casa, conforme ela mesma apontou.
Na ciência, atua na área de física aplicada a alimentos, desenvolvimento de instrumentação e metodologias físicas para avaliar a qualidade de alimentos.
O trabalho busca desenvolver métodos rápidos e eficientes de detecção de anormalidades em alimentos, como, por exemplo, fraudes, produtos deteriorados, métodos de verificação de validade de produtos, identificação de origem de alimentos, entre outros.
Professora na faculdade de Medicina da UFJF, Danielle Teles
Danielle Teles/Arquivo Pessoal
Na área da saúde, Danielle Teles da Cruz desenvolve atividades de ensino, pesquisa e extensão nos cursos de Medicina e Farmácia na UFJF, residência multiprofissional em Saúde, além de ser mestre e doutora em saúde coletiva e da família.
É também ouvidora especializada em ações afirmativas, que tem como princípio o combate a qualquer tipo de discriminação e violência, e busca a utilização de mecanismos de gestão para o autoconhecimento institucional e a consequente otimização dos serviços prestados pela universidade.
Desafios
Apesar de ocuparem cargos de renome no ambiente acadêmico e da ciência, as pesquisadoras tiveram, e ainda têm, alguns desafios na profissão e na vida.
Chilena que se mudou para o Brasil com a família aos 9 anos, Maria José contou que sempre gostou de estudar e desde cedo teve interesse por Física. Ela não teve problemas para ingressar em uma universidade, mas, segundo ela, conviveu com o estigma que pessoas da área da Física sofrem, principalmente as mulheres.
“Puxa, você deve ser um crânio! Nerd e vai ficar para titia... e por aí vai. Nunca entendi a razão disso”, contou.
Atualmente, de acordo com ela, tem como objetivo ajudar outras mulheres a levarem as carreiras à diante, tanto em nível de iniciação científica, como no mestrado ou doutorado.
“Tenho diversas alunas, algumas solteiras, outras casadas e com filhos. Vejo que elas se sentem mais à vontade para falar sobre a situação delas e das dificuldades que encontram para realizar seu trabalho. Entendo quando elas me dizem que não estão se sentindo muito bem para trabalhar, ou que não vão poder realizar uma tarefa programada porque o filho ficou doente, ou coisas desse tipo. Acho que minha forma de participar do movimento tem sido essa”, explicou Maria José.
Para Michele, o desafio é se destacar em um ramo tradicionalmente dominado por homens e sem os investimentos necessários para o desenvolvimento de projetos de pesquisa e inovação.
“A Nanobiotecnologia é uma ciência multidisciplinar que envolve diferentes áreas do conhecimento, dentre elas a Engenharia, Química e Física que são tradicionalmente dominadas pelos homens. Além disso, por ser um campo pouco explorado no Brasil, a distribuição de recursos apresenta assimetria de gênero, sendo mais escassos para as mulheres”, afirmou Michele.
Fisioterapeuta de formação, Daniele afirmou que os padrões sociais influenciam diretamente no acesso e permanência de mulheres no Ensino Superior, assim como no ingresso à carreira acadêmica.
"Ainda devemos considerar que a análise de gênero não pode ser descolada da raça. Então ser mulher, preta, lésbica e de origem periférica é um desafio e uma luta constante tanto para vida pessoal, quanto profissional. Ocupar lugares que até então nos eram negados exige um esforço hercúleo. Creio que as diferentes experiências e vivências relacionadas ao machismo, racismo e lesbofobia (que são estruturais), me constituíram como docente e pesquisadora", afirmou a pesquisadora.
Daniele analisou, ainda, que o olhar para as iniquidades sociais e em saúde despertaram nela o interesse na compreensão da violação do direito à saúde no processo de determinação do processo saúde adoecimento dos indivíduos.
"Desde a graduação, eu percebia a ausência de representatividade e isso meu causava um profundo desconforto. Fiz do desconforto o combustível necessário para galgar novos espaços, sendo a universidade pública a ferramenta para apreensão de conhecimento, novos olhares e possibilidades", pontuou.
Desigualdade
Apesar do progresso nas últimas décadas, o número global de mulheres pesquisadoras ainda é muito pequeno: 35% de todos os estudantes matriculados em cursos de exatas, segundo a ONU Mulheres (entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres).
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"A ciência e a pesquisa são reflexos da sociedade, assim o ambiente acadêmico é um retrato da sociedade que vivemos. Portanto, é também um espaço desigual. E é essa desigualdade que impele a necessidade de reafirmamos o 8 de março como um dia de luta por igualdade de gênero, mas sem perder de vista as outras dimensões que constituem o que é ser mulher. Não adianta pensar somente no machismo e na misoginia, se não olharmos para o racismo, a lgbtfobia e principalmente a transfobia", apontou Daniele.
Os dados retratam esse panorama:
Segundo pesquisa realizada pelo Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2018, apenas 10,4% das mulheres negras com idade entre 25 a 44 anos concluem o ensino superior;
Segundo dados da Unesco, estima-se que apenas 30% dos cientistas do mundo sejam mulheres. O percentual de mulheres pretas e pardas doutoras professoras de programa de pós graduação é inferior a 3%;
Somente 7% das bolsas de produtividade são destinadas a mulheres negras, de acordo com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico;
Focado em pesquisadores das áreas de tecnologia, engenharia e matemática, um estudo com mais de 25 mil cientistas nos EUA aponta que pesquisadores LGBTQIA+ são mais propensos a sofrer discriminação, exclusão e assédio. Eles têm 22% mais chances de ficarem estressados no trabalho, além de uma probabilidade 30% maior de demonstrarem sintomas de depressão;
Já no Brasil, em 2019, cerca de 19% das universidades federais tinham cotas para estudantes LGBTQIA+. Quantidade de estudantes declarados homens ou mulheres trans ainda era muito baixa, de apenas 0,1% em cada caso;
Na UFJF , mulheres eram 56% das alunas em cursos de pós-graduação. Porém, essa maioria percentual cai à medida que a carreira acadêmica evolui: 27% é a porcentagem de mulheres que recebem bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq, por exemplo.
No Departamento de Física da UFJF, dos 40 professores, apenas 5 são mulheres, de acordo com Maria José.
“A área de Física é bastante desigual, no sentido de que o número de mulheres é da ordem de 10% do total. Mas eu diria que esse 10% está atuando muito bem, e tendo destaque em suas áreas de pesquisa, mas de qualquer forma estamos sujeitos a preconceitos, desigualdade de tratamento, que muitas vezes ocorrem de forma velada, outras vezes nem tanto”, apontou.
Para Michele, as cientistas estão longe da igualdade de gênero no ramo. Segundo ela, dentre as novas bolsas de produtividade concedidas a pesquisadores da UFJF em 2022 apenas 21% foram para mulheres cientistas.
“Pesquisadoras têm dificuldade para aprovação de projetos em agências de fomento, ascensão da carreira para atingir cargos de chefia, bem como reconhecimento de suas carreiras científicas como o recebimento de bolsas de produtividade”.
As pesquisadoras ressaltaram, ainda, que para superar este cenário é necessário a implantação de programas e políticas públicas que valorizem e estimulem as mulheres cientistas bem como as novas gerações de mulheres para acesso e participação igualitária na ciência, desde a educação básica até as esferas de pós-graduação e carreias acadêmicas.
"Vivemos em um meio marcado por iniquidades e que reforçam a necessidade de políticas de ações afirmativas e que tenham como princípio tornar a sociedade mais justa, democrática, respeitosa e inclusiva", concluiu Daniele.
Relato
Maria José escreveu um relato onde contou todas as tarefas que ela precisava realizar durante o dia da entrevista feita pelo g1, na última semana. Conforme a pesquisadora, assim como ela, a maioria das mulheres desempenha diversas funções durante o dia para dar conta de tudo e questionou: "Estarei fazendo a coisa certa? Sempre tentando equilibrar essas facetas. Não é simples". (veja abaixo na íntegra)
“Pensei em sentar com calma e escrever um texto sobre o dia da Mulher, mas aí veio a realidade: tive que levar minha filha ao médico e correr na farmácia. Também tive que ir ao mercado, pois faltou alface, tomate e batata para o almoço. No meio disso, estava corrigindo as provas do final do semestre, e também respondendo dúvidas dos alunos sobre as notas deles. Na volta, reunião para discutir projetos com os alunos de pós graduação. A revisão final de dois artigos de pesquisa. Um dia típico.
Aí eu lembrei: seria legal eu conseguir ir ao cabeleireiro, fazer um vídeo simpático com um astral otimista (que eu sou!), com a carinha legal. Mas obviamente não houve tempo. E agora vejo que o prazo que dei para ter tudo pronto acaba hoje, e eu mal comecei. Acordei às 6h da manhã, para levar as meninas na escola. Enquanto fazia o café, pensava no que teria que fazer. Dia 3, não esquecer de pagar contas. E o prazo da revisão do artigo que encerra hoje. Agora estou escrevendo com o barulho do jardineiro arrumando o jardim. Trabalho remoto, faz parte!
Sou mãe, filha, irmã, tia, prima. Também esposa, professora, pesquisadora, cidadã, dona de casa. Mas principalmente, tudo isso junto, com uma pitadinha de dúvida. Estarei fazendo a coisa certa? Sempre tentando equilibrar essas facetas. Não é simples.
E sobre o dia da Mulher? Bem, todas somos guerreiras, a vida não está fácil para ninguém. Não podemos parar de lutar, no bom sentido, no dia a dia, na escola, no trabalho, na rua, em casa. Então qual é o meu recado? Força, meninas!!! Um passo de cada vez e sempre em frente.”
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