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Cotistas aprovados em universidades passam por comissão para validar autodeclaração; antropólogo diz que critérios têm 'aspecto racista'

Por Redação

20/03/2022 às 07:27:51 - Atualizado há
Apesar da cor ou raça do brasileiro ter base na autodeclaração, comissão precisa validar autodeclaração dos candidatos. Na UFPE, centenas de candidaturas foram invalidadas em anos letivos anteriores. Candidatos são submetidos a uma avaliação da Comissão de Heteroidentificação da UFPE para validação da autodeclaração

Reprodução/TV Globo

As políticas de cotas e ações afirmativas são um direito conquistado pela população preta, parda e indígena em 2012, com base na na Lei 12.711. O instrumento de reparação histórica tem o objetivo de instituir políticas públicas de compensação. Apesar da cor ou raça da população brasileira ter como base na autodeclaração, uma comissão precisa validar a autodeclaração dos candidatos.

Em anos letivos anteriores, a análise da Comissão de Heteroidentificação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) invalidou o ingresso de centenas de candidatos que se autodeclararam negros, pardos ou índios. Williane Débora Dias Muniz, que se considera parda, foi uma dessas pessoas e resolveu questionar o sistema de avaliação das cotas raciais da instituição de ensino superior.

A comissão justificou que a candidata "apresenta cabelos lisos, com lábios, nariz e traços finos, não apresentando fenótipo que atenda às exigências para obtenção de cota. Sem traços físicos negroides".

De acordo com Renato Monteiro Athias, que é mestre em etnologia e coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade da UFPE, "é muito difícil dizer quem é pardo no Brasil". Ele também disse que a análise com base em traços físicos "não deixa de ser um aspecto racista”.

O pesquisador lembrou que, de um lado, existe a questão relacionada à cor simplesmente e ao aspecto biológico de uma identidade. Do outro, há a identidade étnica, que é aquilo que a pessoa diz ser.

“A gente trabalha com a noção qualitativa, a identidade da pessoa é aquilo que a pessoa diz que é. As comissões se atêm, principalmente, a essa noção biológica, que não deixa de ser um aspecto racista também”, declarou Renato.

A UFPE explicou que a análise da Comissão de Heteroidentificação é necessária para validar a autodeclaração de quem é é aprovado nas vagas de cotas do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), em processos seletivos e concursos públicos.

Ainda de acordo com a universidade, durante a análise, a comissão considera características fenotípicas, como coloração da pele, formato do nariz, formato da boca e tipo de cabelo. Por isso, é proibido o uso de maquiagem e adereços.

"Os critérios fenotípicos descritos são os que possibilitam, nas relações sociais estabelecidas, o mútuo reconhecimento [candidato(a)/comissão de heteroidentificação] da pessoa preta ou parda", informou, na nota.

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Segundo Renato, esse tipo de avaliação é uma questão que ainda precisa ser bastante trabalhada dentro das universidades. “A lei não percebe as diversas questões relacionadas ao aspecto identitário sem estar relacionado à parte mais biológica”, declarou.

Ele usou como exemplo um amigo que é negro e tem uma esposa branca. “Os filhos têm traços dos dois, mas, mesmo que a pessoa tenha a pele branca, ela se sente negra. Não tem jeito, porque toda relação que ela tem é vista, a identidade dela é vista, mesmo que os outros digam que ela não é, ela vai dizer 'eu sou'”, explicou Renato.

Em termos antropológicos, ele acredita que ainda ocorrerão muitas mudanças relacionadas a questões raciais no Brasil. Renato também acredita que o atual tipo de avaliação feita em comissões de heteroidentificação vai passar por mudanças.

“Se a gente for pensar, essa noção de racismo não é relacionada ao aspecto somente biológico. É muito mais, vai além dessa questão. As instituições ainda estão buscando aperfeiçoar essa ideia de que as pessoas precisam ser para ter”, afirmou Renato.

As análises a respeito de características físicas e biológicas dos candidatos cotistas começam ainda no ato da inscrição, quando é solicitada a digitalização de documentos e também a gravação de um vídeo de frente para a câmera. Mesmo assim, após a aprovação, os candidatos são submetidos a uma avaliação da Comissão de Heteroidentificação.

A universidade acrescentou, no comunicado, que as análises são realizadas após as autodeclarações para evitar que as vagas reservadas sejam ocupadas por quem não faz jus à política de cotas.

Williane Débora Dias Muniz, que se considera parda, questionou o sistema de avaliação das cotas raciais da UFPE

Reprodução/WhatsApp

Na validação da autodeclaração, não é considerada a composição genética do candidato ou fator fenotipico dos pais. A comissão também não considera registros ou documentos, incluindo certidões.

O candidato que se sentir prejudicado pela análise Comissão de Heteroidentificação da UFPE pode recorrer para que avaliação seja revista. Também é possível ingressar com uma manifestação no Ministério Público Federal (MPF), pela internet. A partir disso, ela é recebida e distribuída entre os procuradores da República para análise.

Várias subjetividades

Advogada, professora universitária, e mestre em Direito pela Unicap, Manoela Alves é secretária geral adjunta da OAB-PE

Reprodução/TV Globo

Advogada, professora universitária, e mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), Manoela Alves é secretária geral adjunta da Ordem dos Advogados do Brasil Pernambuco (OAB) e acompanha, de perto, a implementação de políticas afirmativas em diversos espaços.

Primeira mulher negra na diretoria da OAB em Pernambuco, ela explicou que a pessoa negra é composta a partir de várias subjetividades.

"A gente fala da variedade de tonalidades de pele que vão diferenciar exatamente a população preta da população parda. A gente sabe que pretos e pardos são considerados, na nossa sociedade, pessoas negras. Mesmo com essa variação, fazem jus a políticas afirmativas porque a gente não considera que só sofrem racismo pessoas que são negras com tom de pele mais escuro", disse Manoela.

Manoela contou que, apesar de, no Brasil, ser considerada a autodeclaração, já foram identificadas várias tentativas de fraude da lei de cotas, a exemplo de um servidor exonerado por fraudar sistema de cotas em um concurso público do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) em Juiz de Fora, em Minas Gerais.

"O critério prioritário é o da autodeclaração na nossa sociedade, tanto que é autodeclaração para o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] e para vários espaços, mas, quando a gente fala de processos seletivos, a comissão de heteroidentificação seria uma tentativa de a gente garantir que as pessoas que se submetem, na prática, são pessoas, de fato, pretas ou pardas a partir dos critérios do IBGE. As comissões cumprem um papel importantíssimo dentro do sistema, têm total respaldo legal", disse a advogada.

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Fonte: G1
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