Vicente Santini definiu que filme é impróprio para menores de 18 anos; área técnica defendia 16 anos. Regulamentação do tema não prevê atuação do secretário; ministério não quis comentar. O secretário Nacional de Justiça, José Vicente Santini, ignorou a decisão da área técnica do Ministério da Justiça ao mudar, de 14 para 18 anos, a classificação indicativa da comédia "Como se tornar o pior aluno da escola", de 2017.
A decisão foi publicada no último dia 16, um dia após outro despacho do Ministério da Justiça censurar a exibição do filme em plataformas de streaming. O longa vinha sendo atacado por bolsonaristas, em redes sociais, por conter uma cena em que crianças sofrem assédio sexual de um personagem adulto.
Na decisão, Santini cita o resumo da análise feita pelos técnicos da Coordenação de Política de Classificação Indicativa, vinculada à pasta, para justificar a mudança. O secretário, no entanto, considerou apenas os "agravantes" da classificação, e não os atenuantes apontados pelos técnicos.
O secretário ignorou, ainda, a decisão anterior do próprio coordenador da área, Eduardo Nepomuceno, que propunha reclassificar o filme para a faixa etária de 16 anos.
A reavaliação do filme foi feita por iniciativa do próprio ministério – o g1 teve acesso aos documentos internos do processo. Além de Nepomuceno, participaram da revisão um analista do setor e o chefe da Divisão de Classificação Indicativa.
Governo censura filme de comédia de 2017 alegando apologia à pedofilia
A reanálise considerou novas regras estabelecidas em 2018, que são mais restritivas e, por isso, levaram à elevação da idade mínima recomendada.
O parecer da área técnica inclui, além da reclassificação, uma defesa da liberdade de expressão.
O texto reforça que "a revisão da obra preserva tanto a liberdade de expressão, como a proteção de crianças e adolescentes, quanto a exibição de conteúdos inadequados ao seu desenvolvimento psíquico".
O parecer também diz que a classificação indicativa "apenas informa à sociedade (em especial aos pais e responsáveis) as faixas etárias a que os conteúdos não são recomendados, cabendo aos destinatários da norma decidir como agir com relação às crianças e adolescentes sob sua responsabilidade".
Os três responsáveis pela revisão assinaram o documento na manhã do dia 14 de março. A decisão foi informada à Secretaria Nacional de Justiça, em ofício que pedia os "procedimentos de praxe" para a publicação da nova indicação etária no "Diário Oficial da União".
No dia seguinte, no entanto, Vicente Santini ignorou todo esse processo – e enviou ao "Diário Oficial" uma nova classificação, de 18 anos.
No documento publicado, Santini cita os pontos apontados pelos técnicos como relevantes para subir a classificação etária do filme, enquanto ignora os atenuantes que levaram a equipe a propor uma classificação de 16 anos, e não de 18. O despacho saiu no "Diário Oficial" do dia seguinte, 16 de março.
Governo muda classificação indicativa do filme 'Como se tornar o pior aluno da escola'
Ministério da Justiça não explica
A portaria que regulamenta o processo atual de classificação indicativa foi publicada em novembro de 2021, alterando regras que estavam em vigor desde 2018.
Até então, o texto dizia expressamente que o Secretário Nacional de Justiça era a última instância de avaliação da classificação indicativa, caso as decisões da coordenação do setor fossem contestadas.
Foi o que ocorreu, por exemplo, com o filme "Aquarius". Em 2016, quando foi lançado, o filme recebeu recomendação etária de 18 anos. A avaliação foi mantida em um primeiro recurso mas, em seguida, o secretário Nacional de Justiça aceitou reduzir a indicação para 16 anos.
As regras em vigor desde novembro, no entanto, não preveem essa atuação do secretário Nacional de Justiça. Segundo o art. 21 da portaria:
"Compete ao Coordenador de Política de Classificação Indicativa (...) atribuir e publicar no Diário Oficial da União a classificação indicativa das obras analisadas”.
O artigo 61, que trata dos recursos, deixa claro no parágrafo 4º: "Da decisão do diretor do Departamento de Promoção de Políticas de Justiça não caberá recurso".
O departamento é uma instância intermediária – superior à coordenação de classificação indicativa, mas inferior ao secretário de Justiça.
O g1 perguntou ao Ministério da Justiça por que Vicente Santini, que não teria essa atribuição, alterou a decisão soberana da área técnica. A reportagem também pediu informações sobre outras decisões semelhantes tomadas pelo secretário. O governo não respondeu até a publicação desta reportagem.
Polêmica e censura
O filme "Como se tornar o pior aluno da escola" se tornou centro de uma polêmica depois que grupos bolsonaristas começaram a atacar a produção e os realizadores em redes sociais.
A reclamação dizia respeito a uma cena na qual crianças sofrem assédio sexual de um personagem adulto, em ambiente escolar.
Antes da alteração na classificação indicativa, outro órgão do Ministério da Justiça – o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor – tentou censurar a comédia alegando apologia à pedofilia e em defesa da "necessária proteção à criança e ao adolescente". A decisão previa multa diária de R$ 50mil às plataformas que mantivessem o filme disponível para exibição.
Juristas ouvidos pelo g1 afirmaram que a ordem do Ministério da Justiça fere a Constituição e configura censura.
"Neste caso, o Ministério da Justiça está ultrapassando os limites de suas competências. E mais, é uma contradição lógica entre uma decisão, que considera o filme apto para qualquer pessoa com mais de 14 anos, e, em uma segunda decisão, atuando fora do âmbito das competências do Ministério da Justiça, resolve proibir o filme em um ato típico da ditadura militar", afirma o jurista e especialista em direito constitucional Gustavo Binenbojm, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Globoplay e Telecine, duas das plataformas que seriam afetadas pela censura, informaram em nota que “estão atentos às críticas de indivíduos e famílias”, mas que a ordem do ministério para suspender a exibição é censura e “ofende o princípio da liberdade de expressão, é inconstitucional e, portanto, não pode ser cumprida.”
Governo Bolsonaro censura comédia de 2017 alegando apologia à pedofilia
Quem é o secretário?
Advogado de formação, José Vicente Santini é próximo da família Bolsonaro e chefia a Secretaria Nacional de Justiça desde agosto de 2021. Antes, passou por cargos de segundo e terceiro escalão na Secretaria-Geral da Presidência, no Ministério do Meio Ambiente e na Casa Civil do atual governo.
Santini era secretário-adjunto da Casa Civil quando usou um avião da Força Aérea Brasileira para viagens internacionais com apenas outros dois passageiros. Ele era "vice" de Onyx Lorenzoni mas, à época, estava na chefia interina da pasta.
O uso da aeronave levou Santini a ser exonerado pelo presidente Jair Bolsonaro – que, na época, disse que o fato era "inadmissível" e a viagem para a Índia tinha sido "completamente imoral". Pouco depois, Santini voltou a ocupar cargos no governo.
Relembre no vídeo abaixo:
Exonerado por usar avião da FAB, José Vicente Santini volta para cargo no governo