Escritora de “Ciranda de Pedra”, “As Meninas”, “As Horas Nuas”, “Antes do Baile Verde”, “Seminário dos Ratos”, “Mistérios” e outros sucessos, Lygia foi uma voz ativa na vida intelectual e cultural brasileira Autora de “As Meninas” e “Antes do Baile Verde”, só para citar dois livros, a escritora Lygia Fagundes Telles morreu nesse domingo, aos 98 anos. Ela deixa uma obra que reflete seu olhar para o mundo e seu tempo. Nascida em 19 de abril de 1923, ela era filha de um advogado e de uma pianista, em São Paulo.
Escritora de “Ciranda de Pedra”, “As Meninas”, “As Horas Nuas”, “Antes do Baile Verde”, “Seminário dos Ratos”, “A Disciplina do Amor”, “Mistérios”, “Invenção e Memória”, “A noite escura e mais eu” e outros sucessos editoriais, Lygia foi uma voz ativa na vida intelectual e cultural brasileira. Amiga de Clarice Lispector (1920-1977) e de Hilda Hilst (1930-2004), formava com as duas a tríade das modernas da literatura brasileira no século XX.
“Sou uma testemunha do meu tempo e da minha sociedade”, declarou, a respeito de seu foco em temas relacionados à vida urbana, aos fatos de caráter político-social, o amor, o desamor, a solidão, a mulher.
A dedicação profunda de Lygia à escrita, à palavra, a levaram a uma carreira sólida. No decorrer de oito décadas de trabalho, conquistou leitores aqui e lá fora, e atraiu a atenção de seus pares. Por ocasião do lançamento de “Ciranda de Pedra”, seu primeiro romance, de 1954, o sociólogo, crítico e professor Antônio Cândido disse que o livro marcava a sua maturidade intelectual. O livro também arrancou outras bênçãos da intelectualidade, vindas de nomes como Paulo Rónai, Otto Maria Carppeaux e José Paulo Paes.
Lá atrás, logo percebeu o que a esperava. Bonita, elegante, a Lygia estudante de Direito no Largo de São Francisco dos anos 40 chegou a ouvir de homens do seu círculo: “Você é bonita, tem belas pernas. Por que esse negócio de escrever”? Ela contava isso fazendo graça de como o machismo, também em ambientes diferenciados culturalmente, mostrava a sua cara.
Para completar, em casa havia a voz da mãe, Maria do Rosário, que na mesma época soou o alerta: “Você já entrou em uma escola de homens. Vai publicar um livro? Agora você não casa mais”.
Nascida em 19 de abril de 1923, Lygia Fagundes Telles era filha de um advogado e de uma pianista, em São Paulo
Ana Paula Paiva/Valor
Lygia mostrou, por A, B, e todas as letras, a que veio. Para ficar. Seus livros saíram pelas editoras Martins, O Cruzeiro, José Olímpio, Bloch, Cultura, Nova Fronteira, Rocco. Mais recentemente, a Cia das Letras relançou (em 2009) toda a sua obra em edições repaginadas, com capas ilustradas por obras da artista plástica Beatriz Milhazes e posfácios de vários escritores.
Ano após ano de olho nas crias, viu os seus livros conquistarem novos rumos em traduções para espanhol, francês, italiano, inglês, sueco, tcheco, polonês, russo, alemão e chinês, além dos lançamentos em Portugal. Participou de coletâneas, como Gaby, 1964 – em “Os sete pecados capitais”, pela Civilização Brasileira; antologias, uma delas “Os Melhores Contos de Lygia Fagundes Telles”, seleção de Eduardo Portella, em 1984.
Tornou-se referência literária, e como tal não se esquivava a dar a sua palavra em bienais, encontros, debates, no Brasil ou pelo mundo. Dois deles, a Feira do Livro de Frankfurt, em 1994, e o Salão do Livro da França em 1998.
Quanto ao mais, casou-se, sim. Seu primeiro marido foi o jurista e professor de Direito da São Francisco Gofredo da Silva Telles Filho, em 1950. Com ele, então deputado federal, foi morar no Rio de Janeiro. Voltou para São Paulo dois anos depois, e foi para uma fazenda em Araras – da avó do marido, e onde outrora reuniam-se modernistas como Mário e Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Anita Malfati. Lá no interior, Lygia começou a escrever “Ciranda de Pedra”, que seria lançado em 1954. Na ocasião sua mãe já havia falecido. E nesse ano Lygia daria à luz seu único filho.
Ela e Gofredo se separaram em 1960, e um ano depois Lygia assumia como procuradora no Instituto de Previdência do Estado de São Paulo. Mais algum tempo e ela iria reencontrar o amor, na figura de Paulo Emílio Sales Gomes, que já conhecia. Historiador, crítico de cinema, ensaísta que havia morado na França por longo período, foi um dos criadores da Cinemateca Brasileira.
Foi com Paulo Emílio o mergulho de Lygia na seara cinematográfica. Em 1967, o cineasta Paulo Cesar Saraceni procurou-os com o convite: fazer a adaptação para o cinema do romance “Dom Casmurro”, de Machado de Assis. O filme, de 1968, teve no elenco Isabela, Othon Bastos, Raul Cortez e outros. Como contou a escritora, esse trabalho lhe deu enorme satisfação. O texto foi publicado em 1993 sob o título “Capitu”, pela Siciliano.
Feminista por natureza, Lygia não tinha dúvidas sobre o melhor para o convívio e as relações: “ O homem deve estar feliz vendo a mulher livre. Os dois, lado a lado, nivelados, nem superior nem inferior, lado a lado”.
Lygia e Paulo somaram seus amores pela literatura e pelo cinema, e o resultado foi positivo para ambos. Atiçado pela mulher, Paulo Emílio enveredou pela ficção, reunindo três novelas em “Três Mulheres de Três PPPs”. Na época, por volta de 1963, eles estavam em Águas de São Pedro. Ela começando “As Meninas”, ele a sua ficção. Lygia conta que o marido, todo animado, dizia: “Isso é muito bom. Por que você não me disse antes que era tão bom”? Quando ele se foi em 77, ano do lançamento do seu livro, Lygia assumiu a presidência da Cinemateca Brasileira, onde permaneceu por quatro anos.
A vida seguiu seu rumo. Na Bienal do Livro de São Paulo em 2010, Lygia foi homenageada com a mesa Lygia por Lygia – que teve a participação de Maria Adelaide Amaral e do jornalista Paulo Markun. Atenta aos leitores, velhos e moços, conversou e deu autógrafos. Mas nessa mesma ocasião externou, em entrevista, o que ia em sua alma: “Minha vocação me salvou. Acredito que não morri ainda por causa da literatura”. Referia-se às dores da vida, como a perda recente do filho, o cineasta e documentarista Gofredo da Silva Telles Neto (1954-2006), diretor do documentário “Narrarte”, sobre a mãe Lygia e seu trabalho. A segunda perda, Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977), o seu último companheiro.
Cena aberta
Aberta a cenas culturais diversas, a escritora teve o gosto de ver criações suas serem transportadas do impresso para outras formas de expressão – cinema, teatro, televisão. Nessa condição ela podia, ao mesmo tempo, rever sua obra, observar outros profissionais interpretarem suas histórias, e abrir comportas para um público mais amplo. “As Meninas”, livro de 1973, inspirado pela situação política pela qual passava o Brasil, foi adaptado para o cinema em 1996, sob a direção de Emiliano Ribeiro. Adriana Esteves, Drica Moraes e Cláudia Liz interpretaram os papéis principais.
Em 2015, a história das três garotas de estilo e metas de vida completamente diferentes foi para o teatro carioca pelas mãos de Maria Adelaide Amaral, com a direção de Yara de Novaes. No elenco, “As Meninas” teve Clarissa Rockenbach como Lorena; Luciana Brites a Ana Lara, e Sílvia Lourenço, Lia; e colocou no palco, ainda, Daniel Albim, Clarice Abujamra e Sandra Pera.
A televisão, claro, também levou a escritora, e em várias ocasiões. “O Jardim Selvagem” (conto de Antes do Baile Verde), foi Caso Especial da TV Globo em 1978; “O Moço do Saxofone”, do mesmo livro citado acima, foi adaptado pela própria autora para a série Retratos de Mulher, da Rede Globo, em 1993, como Era uma vez Valdete.
“Ciranda de Pedra” virou telenovela de sucesso na TV Globo, em duas versões: a primeira de 1981, de Teixeira Filho, foi dirigida por Reynaldo Bouri e Wolf Maia e estrelada por Lucélia Santos. A segunda produção teve texto de Alcides Nogueira, direção de Denise Saraceni e Carlos Araújo e trouxe Ana Paula Arósio como a estrela da trama.
Textos curtos de Lygia Fagundes Telles entraram nos Contos da Meia-Noite, (2003/2004), da TV Cultura, programa que levou para a tela autores brasileiros (Dalton Trevisan, Machado de Assis, Simões Lopes, Ribeiro Couto, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles e outros) em trabalhos adaptados para o formato, com duração de 10 minutos. A escritora paulistana entrou com os contos “A Caçada”, por Antônio Abujamra; “A Medalha”, com Maria Luiza Mendonça; Natal na Barca, com Beatriz Segall.
A mesma emissora produziu, com direção de Hélio Goldsztejn, em 2017, o documentário “Lygia, uma escritora brasileira”, em que refez sua trajetória, incluiu uma série de depoimentos – entre os depoentes, Ignácio de Loyola Brandão, Ana Verônica Mautner, Jô Soares, Paulo Werneck – e oferece a chance de o espectador conhecer a dimensão da personagem retratada.
De volta à origem
Lygia passou a infância em cidades do interior de São Paulo. A família morou em Sertãozinho, Descalvado, Areias, Apiaí, conforme impunha a carreira do dr. Durval de Azevedo Fagundes, como delegado e promotor público. Seu pai morreria no ano de 1945, e a mãe, dona Maria do Rosário Silva Jardim de Moura, em 1953.
Menina ainda, Lygia descobriu o que queria fazer na vida, escrever histórias. E começou a rabiscar as primeiras histórias nas últimas páginas do caderno escolar, para contá-las nas reuniões de família. Aos 15 anos lançou um livro de contos, “Porão e Sobrado”, com a ajuda do pai. Esse, e outros escritos, até os que lançou pouco mais tarde – Praia Viva”, de 1945, e “O Cacto Vermelho”, de 1949, não passaram no crivo da Lygia adulta, que deletou os arroubos juvenis do conjunto da obra. “ Frutos da imaturidade”, explicou.
Lembrança marcante e sobre a qual falou algumas vezes diz respeito ao gosto do pai por casas de jogos. Um dos endereços em que tentava a sorte nos idos dos 1930 e 40 era o Parque Balneário de Santos. Ali a filha tomava sorvete, o pai apostava nas fichas. Na roleta, ele escolhia o verde. Assim ela passou ela gostar dessa cor. “Eu, que jogo na palavra, sempre preferi o verde, está em toda a minha ficção. É a cor da esperança, que aprendi com meu pai”, disse. E o pai, a cada perda dizia: âamanhã a gente ganhaâ.
Aluna do Instituto de Educação Caetano de Campos no fundamental, Lygia entrou para a Escola Superior de Educação Física em 1940, e iniciou ao mesmo tempo o preparatório para a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, na qual ingressou em 1941.
Ah, o mundo das letras enfim. A Faculdade de Direito é um ambiente que proporciona à jovem frequentar com os colegas cafés, livrarias e restaurantes do centro da cidade, e conhecer gente como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Paulo Emílio Salles Gomes. Agora membro da Academia de Letras da Faculdade, ela escreve para os jornais A Arcádia e A Balança. E ganha o seu próprio dinheiro trabalhando como assistente no Departamento Agrícola do Estado de São Paulo.
Conturbada década, quando Lygia Fagundes lança sua segunda coletânea de contos, “Praia Viva”. A vida estudantil está agitada. Frente à mobilização em São Paulo contra o regime do Estado Novo, Lygia sai em passeata com os colegas das Arcadas.
Não era a primeira vez, nem seria a última em que Lygia desafiaria regras. Era 1941. Ela fica sabendo da prisão do escritor Monteiro Lobato, motivada pela irritação das autoridades com as cartas enviadas por Lobato ao presidente Getúlio Vargas e ao general Góes Monteiro, chefe do Estado-Maior do Exército, expondo o seu posicionamento contra a política nacional na área do petróleo.
De imediato, Lygia decide visita-lo na cadeia, e toma o rumo do presídio da Liberdade. Lá, encarou o segurança, disse que era estudante de Direito e que queria ver o escritor. Custou, mas conseguiu entrar, e foi recebida com surpresa e satisfação por Monteiro Lobato, por ver ali uma “futura colega”. A vida seguiu. Quando chegou o aniversário de Lygia, em abril, sua mãe saiu para as compras da noite e voltou com um recado: havia encontrado na rua um amigo que viria visitá-la mais tarde. Era Lobato, que chegou com um buquê de flores para dar os parabéns.
Em 1977, outro momento em que deu o recado. A ditadura impunha censura às artes, às letras, ao jornalismo. Lygia, ao lado de outros intelectuais liderou o movimento que produziu um manifesto reivindicando o fim da censura. Mais de mil pessoas assinaram o Manifesto dos Intelectuais, entre elas Antônio Cândido, Oscar Niemeyer, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado. Era janeiro de 77, uma comissão formada por Hélio Silva, Lygia Fagundes Telles, Nélida Pinon e Jefferson Ribeiro de Andrade foi a Brasília entregar o documento a Armando Falcão, ministro da Justiça. Não foram recebidos. “É, não pudemos entregar em mãos. Mas a imprensa havia sido avisada e estava lá, em peso. Foi extraordinário”, recordou em entrevista ao programa Roda Viva, na TV Cultura.
Às vezes, a esperança. O homem vai sobreviver, e essa certeza me vem quando vejo o mar, um mar que talhou com tanta poluição, embora! mas resistindo. Contemplo as montanhas e fico maravilhada porque elas ainda estão vivas. Sei que é preciso apostar e de aposta em aposta cheguei a esta Casa para a harmoniosa convivência com aqueles que apostam na palavra.
(trecho do discurso de posse de Lygia Fagundes Telles na cadeira de número 16 da Academia Brasileira de Letras – ABL – em 1987)
A vencedora
Lygia Fagundes Telles recebeu suas honras pelo trabalho – ou melhor, por seguir a sua vocação e escrever. A lista de reconhecimentos é longa, e inclui, por exemplo, a premiação, em 1970, por “Antes do Baile Verde” – o Grande Prêmio Internacional Feminino para Estrangeiros, na França. Também levou 3 Jabutis: em 1974, por “As Meninas” (que recebeu ainda o Coelho Neto, da ABL, e o Ficção da APCA); em 1996 por “A Noite Escura e mais Eu” (também ganhador de Melhor Livro de Contos da Biblioteca Nacional, e o APLUB de Literatura); e em 2001 por “Invenção e Memória” (que também levou o APCA e o Golfinho de Ouro).
Membro da Academia Brasileira de Letras, da Academia Paulista de Letras, da Academia de Ciências de Lisboa, ela recebeu em 2005 o Camões, o mais importante prêmio da literatura de língua portuguesa.
Doutora Honoris Causa pela Universidade de Brasília (UnB) em 2001, a escritora Lygia Fagundes Telles foi a única brasileira a ser indicada (pela União Brasileira de Escritores), a concorrer ao Prêmio Nobel de Literatura, em 2016. Não ganhou, mas estava no páreo.