Celulares sem carregadores são oferecidos ao público, mas não bastam para diminuir o forte impacto ambiental do descarte de lixo eletrônico Quem compra um celular sem carregador? Talvez uma pessoa seduzida por uma narrativa de marketing inspirada na pegada baixo carbono que a convença a abrir mão, pelo menos por um tempo, de itens essenciais para o funcionamento do produto em prol de uma suposta redução do lixo eletrônico. Um/a consumidor/a com consciência da crise climática, mas não engajado/a a ponto de adiar ou cancelar a aquisição de um novo equipamento.
No mercado brasileiro, celulares sem carregadores (eles devem ser solicitados no site da empresa para envio em até 30 dias) são oferecidos por algumas marcas a potenciais clientes por simpáticos e eficientes vendedores e vendedoras como uma iniciativa ambiental da fabricante, fortemente empenhada em diminuir a quantidade “e-waste”, ou e-lixo, no planeta.
Trata-se de um compromisso importante para o mundo corporativo nos dias de hoje, sob a ótica da ESG (práticas ambientais, sociais e de governança, na sigla em inglês), e também com bom apelo junto a consumidores/as que acreditam na necessidade de se juntar aos esforços para conter a emergência climática. Negócio fechado. Mas o carregador avulso está longe de dar alívio ao forte impacto socioambiental do descarte dos diversos aparelhos e equipamentos que nos acompanham 24 x 7. Fabricantes têm papel central no processo, que é complexo e vai muito além de ações pontuais, às vezes inócuas.
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Lixo eletrônico é um problemão no mundo que tende a se agravar cada vez mais rapidamente. Em um país de apaixonados por equipamentos eletrônicos e pouco afeito à coleta seletiva e à reciclagem a questão é complicada. Dados da Anatel, referentes a março deste ano, indicam que existem no Brasil 258,3 milhões de celulares: são 120,5 dispositivos por 100 habitantes.
Embora fãs dos aparelhinhos, os brasileiros têm pouco conhecimento sobre sua — e a de outros eletroeletrônicos — destinação final. A maioria da população (87%) já ouviu falar em lixo eletrônico, mas não tem claro o que o termo representa. Há uma confusão entre o que é o lixo digital (como spam) e o físico (os resíduos eletrônicos), segundo a pesquisa Resíduos Eletrônicos no Brasil - 2021, da Green Electron, gestora para logística reversa de equipamentos eletroeletrônicos, fundada pela Associação Brasileira da Indústria Eletro Eletrônica (Abinee).
Nas casas de 87% da população existe algum tipo de eletroeletrônico sem utilidade e 25% dos brasileiros nunca levaram seus resíduos eletrônicos até um ponto de coleta, ou ponto de entrega voluntária (PEV).
O país não está sozinho. O Global E-Waste Monitor, ação colaborativa que reúne a Universidade da ONU (UNU), associações internacionais de telecomunicações e de resíduos sólidos, além do Pnuma, programa ambiental da ONU, aponta que em 2019 o mundo produziu impressionantes 53,6 toneladas métricas de lixo eletrônico, uma média de 7,3 kg per capita. A geração mundial desses resíduos aumentou 9,2 toneladas métricas entre 2014 e 2019. E as projeções indicam que o e-lixo vai totalizar 74,7 toneladas métricas até 2030 — quase dobrando de volume em 16 anos.
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Menos de 3% de 2 milhões de toneladas de resíduos eletrônicos descartados pelo Brasil em 2019 foram reciclados, de acordo com os dados mais recentes disponíveis das Nações Unidas. Componentes químicos do lixo eletrônico, quando descartados e manuseados de forma incorreta, prejudicam o ambiente, podem contaminar o solo e os cursos dâágua e são sérios riscos à saúde.
Mas esses dispositivos são também uma verdadeira mina: mais de 70 metais estáveis da tabela periódica podem ser encontrados em um smartphone moderno. Reciclados, têm potencial para conversão em matéria-prima para diferentes indústrias, evitando a extração de limitados recursos naturais.
O estudo Future E-Waste Scenarios, sobre o futuro do lixo eletrônico, feito por um grupo de instituições que incluem a UNU, nota que a vida útil de produtos como celulares está diminuindo. Causas: o avanço tecnológico que torna o produto defasado, obsolescência programada, impossibilidade de conserto ou problemas de compatibilidade de software. Para aparelhos de uso intensivo de energia, a disponibilidade de tecnologia com maior eficiência energética incentiva a substituição de itens antigos, o que também contribui para a geração de lixo eletrônico.
O tamanho e a gravidade do problema do e-lixo no futuro, aponta o artigo, dependerão, em última análise, dos modelos de produção e consumo. A inovação tecnológica e o uso crescente de produtos eletrônicos são inevitáveis, e a forma como esses produtos vão evoluir não pode ser controlada.
Seria muito bem vindo um esforço dos fabricantes para garantir a disponibilidade de peças para reparos (a preços acessíveis) por períodos mais longos e a compatibilidade de softwares. Assim como a possibilidade de reutilização de produtos e componentes, contemplados a partir de seu projeto. A ampliação da vida útil certamente também é uma contribuição importante. Os consumidores, por sua vez, podem adotar serviços de compartilhamento ou, simplesmente, pensar duas vezes antes de trocar o aparelho.
E o carregador avulso? Bem, talvez seja necessário um esforço adicional para explicar como é possível reduzir a pegada de carbono ou o volume de descarte se a pessoa que adquire o aparelho sem o carregador irá, com uma ajudinha do Procon (Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor), receber em casa o acessório em até 30 dias. A alternativa para o tempo de espera é adquirir um adaptador caso o plug do modelo antigo não seja compatível com o do aparelho novo. Saldo final: o carregador que não serve mais será descartado de qualquer maneira (com sorte de modo correto), um adaptador, que seria dispensável se os plugs dos modelos conversassem, será usado por até um mês e deve seguir também para seu destino final em breve. E, no percurso, haverá um envio adicional de equipamento, que requer transporte e embalagem. Difícil entender.
No cardápio
Quando chega a uma barraca de feira para comprar um pastel, o consumidor sabe que o pastel de vento ali oferecido não tem recheio. O nome do produto que está à venda corresponde exatamente ao produto que será entregue ao cliente. É uma boa prática de negócios, adotada por pequenos empreendedores, que poderia inspirar grandes redes multinacionais de fast-food.
Celia Rosemblum é editora de projetos especiais no Valor Econômico, onde está desde sua fundação, em 2000. É jornalista formada pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), com pós-graduação em gestão responsável para a sustentabilidade pela Fundação Dom Cabral. Passou pelas redações da “Gazeta Mercantil”, de "O Estado de S.Paulo" e atuou em comunicação corporativa. É jornalista amiga da criança.
Sucato de Computador - Lixo Eletrônico
Foto de divulgação / Greenpeace