Lembrada com frequência pelo presidente da República Jair Bolsonaro (PL) quando se volta contra os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), a Constituição Federal de 1988 determina no artigo 5º que “todos são iguais perante a lei” e garante “a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
O primeiro direito citado no referido artigo da Carta Magna tem sido violado em recorrentes episódios de ações policiais que resultam em mortes pelo país.
O mais recente episódio, que vitimou Genivaldo de Jesus Santos, de 38 anos, na última quarta-feira (25), chocou o Brasil pela truculência dos agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) de Sergipe.
Após agressões físicas contra o homem, diagnosticado e tratado por esquizofrenia, os agentes o colocaram no porta-malas da viatura policial e improvisaram uma “câmara de gás”, que asfixiou Genivaldo até a morte.
Em nota oficial divulgada após a repercussão dos vídeos que registraram a brutalidade policial, a PRF de Sergipe justificou que o homem “resistiu ativamente” à abordagem e que, devido à agressividade dele, “foram empregadas técnicas de imobilização e instrumentos de menor potencial ofensivo para sua contenção”.
A nota informa a morte de Genivaldo, lamenta e promete um “procedimento disciplinar para averiguar a conduta dos policiais envolvidos”. Eles foram afastados da corporação.
De acordo com o boletim de ocorrência registrado, a equipe de policiais rodoviários “visualizou uma motocicleta de placa OUP0J89/SE sendo conduzida por um indivíduo sem capacete de segurança, motivo pelo qual procedeu à sua abordagem”.
Na avaliação de Belisário dos Santos Jr., membro da Comissão Internacional de Juristas, com sede em Genebra, na Suíça, e membro da Comissão Arns de Direitos Humanos, o despreparo da PRF é evidente.
"Não há comando que fiscalize a formação das polícias e seguimento de protocolos. Genivaldo, um homem negro, estava sem capacete. Isso é uma falta administrativa, que podia implicar qualquer coisa, menos a morte dele. Mostra o despreparo da polícia”, ressalta Santos Jr., que também é ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo.
"As polícias saem de casa para abater o inimigo. Quem é essa pessoa que figura como 'inimigo' no Brasil? São as pessoas negras. Essa violação de direitos ocorre com frequência porque essas pessoas não são vistas como humanas. São vistas como objetos que podem ser descartados, então pode violar que fica tudo bem", critica Maíra de Deus Brito, professora voluntária da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), pesquisadora e doutoranda em Direitos Humanos e Cidadania na mesma instituição.
Ao comentar o caso na quinta-feira (26), Bolsonaro comparou com a morte de dois agentes da PRF no Ceará por um homem que estava andando na rodovia e que conseguiu desarmar um dos policiais. O presidente também disse que não sabia o que Genivaldo “tinha na cabeça”.
Na manhã da sexta-feira (27), ele levou na garupa da sua moto, durante uma motociata em Goiânia (GO), o deputado federal Major Vitor Hugo (PL-GO), que não usava capacete.
Nesta mesma semana, na madrugada da terça-feira (24), foi realizada uma operação policial na Vila Cruzeiro, uma das favelas do Complexo da Penha, na zona norte do Rio de Janeiro.
Planejada durante meses, a ação não visava cumprir mandados de prisão, segundo o comandante do Bope (Batalhão de Operações Especiais), tenente-coronel Uirá do Nascimento Ferreira. Ele esclareceu que a ação era de inteligência. A operação resultou em 23 mortos e foi parabenizada duas vezes por Bolsonaro nas redes sociais.
Esse episódio se assemelha ao da operação na favela do Jacarezinho, que ocorreu em maio de 2021, e deixou 28 pessoas mortas, até o momento, a mais letal da história do Rio de Janeiro.
Olhando apenas para o Rio de Janeiro, em um ano de gestão do governador Cláudio Castro (PL), foram registradas 182 mortes em 40 chacinas, segundo o mais recente levantamento do Instituto Fogo Cruzado e do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), que estuda a violência na Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisas na área de segurança pública classificam como chacina as ações policiais que resultam em ao menos três mortes.
Também no ano passado, em outubro, a polícia promoveu a morte de 26 pessoas em Varginha, no Sul de Minas Gerais, com a justificativa de que essas pessoas eram suspeitas de envolvimento numa quadrilha que planejava assaltar bancos. As apurações sobre a conduta dos policiais ainda correm em sigilo.
Tanto as operações do Rio de Janeiro quanto essa em Minas Gerais, contaram com a participação da PRF, embora fossem em centros urbanos e não em rodovias federais. A PRF é uma das categorias da segurança pública que pressionam o governo Bolsonaro por reajuste salarial acima de 5% e reestruturação de carreira.
"A Constituição, no artigo 144, fala que a PRF tem por missão o policiamento ostensivo das rodovias federais. Se isso fosse seguido, teria sido evitada a participação da PRF nas operações policiais de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, que caracterizaram chacinas”, destaca Santos Jr., e prossegue: "Esse desvio de uso da PRF, com envolvimento nessas chacinas, denota um problema no comando da polícia. Há também o uso irregular de instrumentos policiais na operação que levou à morte de Genivaldo”.
Para Brito, o impacto coletivo dessas mortes não tem sido levado a sério como deveria. “Falta para a população pensar no impacto dessas mortes. O nome disso não é operação policial, é chacina. Quando ocorre uma chacina como essa da Vila Cruzeiro ou de Jacarezinho, não foram apenas 26 mortes. Estão sendo destruídas várias famílias, toda uma comunidade.”
“Que futuro o Brasil vai ter se ele não para de matar, sobretudo os jovens? Que futuro mais justo, mais plural, mais diverso a gente vai conseguir sonhar para o nosso país se esse futuro está sendo assassinado?”, acrescenta a pesquisadora, cujo trabalho analítico do extermínio da juventude negra sob a perspectiva das mães de vítimas, moradoras de favelas do Rio de Janeiro, resultou na obra Não. Ele não está (2018).
Gabriel Sampaio, advogado e coordenador de Litígio Estratégico e do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas Direitos Humanos, lembra que a lei tem sido descumprida nessas ações letais das polícias.
“Temos na nossa legislação ferramentas que são essenciais para evitar abusos. O que vimos nos casos da Vila Cruzeiro e do Genivaldo viola em absoluto as regras do Estado democrático de direito, da Constituição e dos tratados de direitos humanos. São ações absolutamente ilegais.”
“Quando nós autorizamos o Estado e o agente público a agir fora da lei para defender uma posição justiceira, nós abrimos porta para a injustiça e violação de direitos das quais nós mesmos podemos ser vítimas”, completa Sampaio.
Sobre as chacinas, Brito chama atenção para os efeitos dos assassinatos nas famílias das vítimas. “É um mega impacto para o coletivo. São mães, pais, irmãos, avós que ficam doentes e podem morrer também com a tristeza, com a depressão. Isso é coisa séria, é uma cadeia de violência.”
Para os especialistas, são necessárias mudanças no controle, na fiscalização e na formação dos agentes policiais. “Um caminho muito importante é o controle da atividade policial promovido por órgãos internos, corregedorias, ouvidorias, e pelo Ministério Público. Essa é uma forma de garantir que as instituições policiais ajam de acordo com a lei. Esse controle é um instrumento fundamental para prevenir as ações letais e abusos”, ressalta Sampaio.
Acompanhando essa perspectiva, Rafael Alcadipani, professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) e associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, nota a necessidade de inteligência nas táticas.
"É preciso cobrar que as polícias sejam profissionais e racionais, com melhoria das táticas e das técnicas para tomarem decisões, e não ter uma tomada de decisão calcada na vingança e critérios irracionais.”
“Vários países do mundo têm forças policiais eficientes sem essa letalidade que ocorre no Brasil. A polícia do Chile tem esse modelo, a da Colômbia deixou de ser truculenta para ser mais profissional. Essa transição é possível, pois eles passaram a investir em formação baseada no profissionalismo, levaram os policiais para estudar na universidade, formaram lideranças com uma cabeça racional”, complementa Alcadipani.
“Toda vez que o Estado deixa de dar respostas rigorosas aos agentes públicos que descumprem a lei, especialmente quando tratamos de ações violentas e letais, acaba sinalizando que há um nível de complacência com o abuso e violência. Por isso é importante que todas as instituições se engajem na rigorosa responsabilização e punição daqueles que violam a lei, sob o risco de essas instituições perderem credibilidade diante desses abusos”, conclui Sampaio.
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