A presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai) decidiu deixar vago um cargo decisivo para a fiscalização, o monitoramento e o desenvolvimento da terra indígena Vale do Javari, no estado do Amazonas.
A função é considerada fundamental ainda para a proteção de povos isolados e de recente contato que vivem no território.
O cargo está vago há mais de um ano, desde maio de 2021. O gabinete do presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier da Silva, negou por três vezes a nomeação de um servidor
efetivo para a função.
O pedido para a nomeação foi feito pela coordenação da Funai na região –a unidade do órgão fica em Atalaia do Norte (AM), a cidade mais próxima da terra indígena.
A ausência de um funcionário de carreira que atua na fiscalização cria, na prática, um incentivo para o avanço da pesca e da caça ilegais na região onde o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram mortos.
Essas atividades ilegais são hoje a principal linha de investigação para estabelecer uma motivação do crime.
O cargo que segue vago é o de chefe do Serviço de Gestão Ambiental e Territorial (Segat), que só pode ser ocupado por um servidor do quadro efetivo.
A exoneração do último responsável ocorreu em maio de 2021. Depois disso, um pedido de nomeação de um servidor efetivo foi enviado a Brasília, tramitou por áreas técnicas e acabou barrado pela presidência da Funai.
O pedido foi reiterado duas vezes, e negado novamente em ambas ocasiões, segundo as fontes ouvidas pela Folha. A alegação da presidência do órgão foram fatores de "conveniência e oportunidade".
Ao chefe do Segat cabe uma articulação com órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Exército para ações de fiscalização e repressão a crimes ambientais na região da terra indígena.
As articulações mais frequentes são com o Exército, em razão da quase completa ausência do Ibama na região do Vale do Javari.
Com o cargo de Segat vago, praticamente deixaram de ocorrer operações de fiscalização e monitoramento na terra indígena e nas imediações.
Sem fiscalização, de acordo com relatos feitos à Folha, atividades de pesca e caça ilegais passaram a ser cada vez mais intensas na região, dentro e fora da terra indígena.
O interesse especial da atividade predatória é pelo pirarucu, um peixe caro e que não pode ser pescado fora de plano de manejo; e pelo tracajá, um cágado bastante apreciado pelos colombianos –Atalaia do Norte está na tríplice fronteira do Brasil com Peru e Colômbia.
As mortes de Bruno e Dom, que ficaram desaparecidos por 11 dias após percorrerem o rio Itaquaí nas proximidades da terra indígena, têm relação com as atividades de pesca e caça ilegal na região, segundo as investigações da Polícia Civil do Amazonas e da PF.
O pescador Amarildo Oliveira, o Pelado, confessou participação no assassinato dos dois, segundo informação divulgada pela PF. Pelado disse que o crime teve relação com as barreiras impostas por Pereira à atividade de pesca ilegal.
Bruno era servidor da Funai e licenciou-se do órgão após ser exonerado do cargo de coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato.
Começou a trabalhar na União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (unijava) e foi decisivo para a estruturação do serviço de vigilância indígena, composto por populações que vivem no território demarcado.
A vigilância indígena acaba exercendo o papel que deveria ser feito por órgãos do governo.
O esvaziamento desses órgãos, como é o caso da falta de um chefe do Segat na Funai em Atalaia do Norte, e o avanço de atividades ilegais, em especial a pesca do pirarucu, levaram à estruturação do serviço de vigilância indígena.
A Funai já teve mais de 30 servidores na unidade em Atalaia do Norte, há mais de 10 anos.
Hoje, são 12. A coordenação é responsável pela terra indígena Vale do Javari e mais quatro territórios demarcados na região.
Até ficar vago, o Segat estava voltado principalmente para uma tentativa de fiscalização e repressão de atividades de pesca e caça ilegais, em articulação com o Exército.
Hoje, são as bases de fiscalização da Funai na entrada de terras indígenas as principais responsáveis por tentativas de identificação de ilícitos nesses territórios.
Procurada, a Funai não respondeu a questionamentos enviados pela Folha.
Na última terça-feira (14), a Folha mostrou que o governo federal abandonou o assentamento rural e o plano de manejo de pirarucu existentes na região onde Pereira e Phillips desapareceram. As iniciativas hoje se restringem a placas gastas instaladas em pontos na beira do rio Itaquaí.
O abandono do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Lago de São Rafael, criado em 2011 para assentar 200 famílias ribeirinhas, e do plano de manejo do pirarucu contribuiu para o incremento da pesca e da caça ilegal na região.
Uma placa do governo federal instalada próxima à comunidade São Rafael, o último lugar visitado por Pereira e Phillips antes do desaparecimento, indica que ali existe um assentamento agroextrativista, com a responsabilidade de ser desenvolvido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
A placa está localizada ao lado de uma casa, que deveria ser um posto de fiscalização a cargo do Incra e do Ibama. Ao órgão ambiental, caberia fiscalizar o plano de manejo sustentável do pirarucu.
Não há fiscais ou investimentos no assentamento e em fiscalização. Nesse cenário, os ribeirinhos ficaram, em 2021, sem cota da quantidade de pirarucu que pode ser pescada legalmente nos lagos das comunidades, dizem os próprios moradores; e não há servidores do Incra e do Ibama em Atalaia, segundo o prefeito da cidade, Denis Paiva (União Brasil).
A unidade do Incra em Benjamin Constant, município vizinho, foi fechada em 2021, conforme o prefeito. (Folhapress)