No mercado de Benjamin Constant, no extremo oeste do Amazonas, moradores não se arriscam a dar informações sobre Amarildo da Costa Oliveira, de 41 anos, matador confesso do indigenista Bruno Pereira, de 41, e do jornalista Dom Phillips, de 57. Ao ser preso, "Pelado", como é conhecido, se descreveu como um "homem simples" e "arrependido" pelo duplo homicídio que impactou o mundo.
Não há registros policiais envolvendo o nome dele no último um ano e meio, período disponível para consulta. As Polícias Civil e Federal e os indígenas, contudo, têm informações de inteligência de que ele está longe de ser um pescador pacato do Vale do Javari. Pelado é suspeito de integrar uma extensa rede criminosa que vai além do comércio de pirarucus e outras espécies raras de peixes. Seu esquema tem ligações diretas com o tráfico de armas e de drogas.
O Estadão esteve no local onde Pelado vendia peixe pescado ilegalmente. "Isso aqui é a fronteira (com o Peru). Se você falar uma coisa que não sabe, no outro dia você está com a boca cheia de formiga", disse um comerciante sobre o silêncio. O destino trágico de Pereira, que treinava índios a filmar a ação de criminosos na floresta, e Phillips, que registrava para um livro a ação do colega, justifica o temor.
A atuação de Pelado gira em torno de um homem apelidado de Colômbia, um peruano casado com uma brasileira e com dupla cidadania. Dono de propriedades em Benjamin Constant, Colômbia opera o esquema de venda de peixes que abastece não apenas comércios, hotéis, restaurantes e cafés do Alto Solimões, mas também de cidades mais distantes como Tefé e Manaus.
A polícia trabalha com a suspeita de que ele seria um intermediário de cartéis de narcotraficantes e comprador de recursos explorados por pescadores no território indígena do Vale do Javari. Colômbia reapareceu nas apurações sobre as mortes de Pereira e Phillips, mas a polícia ainda o procura, assim como seu verdadeiro nome.
Ao longo dos rios da fronteira, Colômbia tem seus prepostos. Investigadores e ribeirinhos ouvidos pelo Estadão afirmam que Pelado seria um braço dele nas comunidades da beira do Rio Itaquaí. Em especial, em São Rafael, São Gabriel e São Ladário, que ficam a cerca de uma hora e meia do cais de Atalaia do Norte e são conhecidas pela forte influência de traficantes de drogas
Assim como quase todo mundo na região, Amarildo é conhecido pelo apelido que ganhou porque nasceu sem cabelo. Os pais ribeirinhos tiveram oito filhos, sendo cinco homens que aprenderam o ofício da pesca. Em 1996, ele era adolescente quando o governo criou o território indígena do Javari, após uma série de assassinatos de isolados por pescadores e madeireiros.
A medida estabeleceu que os ribeirinhos podiam pescar nos rios e lagos próximos de suas comunidades e os cursos da área demarcada, que abrange as cabeceiras do Itaquaí, ficariam restritos aos indígenas de contato com a sociedade nacional e os isolados.
As investidas de Pelado e outros pescadores da rede criminosa no Javari eram lucrativas. Em março, Pereira chegou a apreender uma embarcação com R$ 120 mil em pirarucus, tracajás e tartarugas. O indigenista sofria ameaças desde que criou uma equipe de vigilância indígena para monitorar e documentar a exploração ilegal.
Pelado e seu irmão Oseney Oliveira, o "Dos Santos", estão presos na delegacia de Atalaia do Norte. Foram colocados em celas separadas, mas em companhia de outros presos. Os espaços são pequenos, fétidos e sem ventilação. A esposa de Pelado também foi chamada a depor. Na tarde de ontem, um terceiro homem suspeito de participar dos homicídios, Jeferson da Silva Lima, o Pelado da Dinha, se entregou à polícia.
Nas calhas do Itaquaí e do Javari, Pelado é muito conhecido por indígenas e indigenistas que denunciam a exploração ilegal. Ele é citado em um dos últimos dossiês que Pereira levou às autoridades federais, em abril. As invasões de Pelado e outros pescadores ligados a Colômbia para explorar o território protegido eram constantes. Segundo depoimentos à polícia nas investigações dos assassinatos, ele também costumava atirar contra indígenas que tentavam expulsá-lo de suas terras.
Investigar a atuação de quadrilhas internacionais requer estrutura e empenho que não existe na região. A telefonia não funciona, as transações financeiras ocorrem por fora do sistema bancário, ninguém emite nota fiscal e tudo demanda horas de viagem pelo labirinto de águas.
Antes de assumir a ocultação dos corpos e os tiros que mataram Pereira e Phillips, Pelado chegou a pedir alguma "vantagem" para "esticar mais", "falar um pouco mais". A polícia disse que já tinha muitos elementos para responsabilizá-lo. Pelado, então, confessou, contrariado e temeroso de que outros parentes seriam arrastados para a investigação. "A porra da Justiça é foda", reclamou aos investigadores.
A relação de grupos de narcotraficantes com ribeirinhos e pescadores se dá por duas razões principais, segundo apurou o Estadão com advogados, investigadores e pessoas com acesso a traficantes de drogas. A primeira é alimentar negócios criados por traficantes em cidades como Benjamin Constant e Tabatinga, no lado brasileiro, Letícia, na Colômbia, e Islândia, no Peru. São hotéis, restaurantes e cafés constituídos para dar aparência de legalidade em receitas provenientes do tráfico.
O outro interesse do crime organizado sobre os ribeirinhos é ganhar a confiança e o respaldo desses grupos para que possam operar rotas de tráfico de drogas e de armas.
A Polícia Federal em Manaus descartou as teses de crime de mando e de envolvimento de organizações criminosas nas mortes de Pereira e Phillips. No depoimento, Pelado não revelou nem para quem vende os pirarucus, tracajás e tartarugas que retira da terra indígena. "Vendo para quem paga melhor", limitou-se a dizer aos agentes.
Para indígenas, investigadores e ribeirinhos ouvidos pela reportagem, entretanto, Pelado é a ponta de uma sofisticada rede criminosa. "Bruno morreu porque protegia os isolados", disse Beto Marubo, líder indígena. "O roubo de produtos naturais chega a toneladas todos os meses." (Estadão Conteúdo)