Em dois anos, as mortes de crianças até cinco anos por Covid-19 foram mais do que o triplo das causadas, em uma década, por outras 14 doenças que podem ter mortalidade evitada por vacinação e outras ações de saúde.
Em 2020 e 2021, 1.508 crianças morreram por Covid. Já as doenças que compõem a Lista Brasileira de Mortes Evitáveis somaram 44 óbitos nesse período. Entre 2012 e 2021, totalizaram 498 mortes.
A lista, formulada por especialistas de diversas áreas ligadas à saúde infantil e coordenada pelo Ministério da Saúde, reúne as seguintes doenças: neurotuberculose, tuberculose miliar, tétano neonatal, tétano, difteria, coqueluche, poliomielite, sarampo, rubéola, hepatite B, caxumba, rubéola congênita, hepatite viral congênita e meningite meningocócica do tipo B.
A relação inclui doenças que podem matar, mas que são passíveis de prevenção por meio de intervenções do SUS, como vacinação, pré-natal adequado e acesso à atenção básica à saúde, cuidados no parto e pós-nascimento.
A análise é do Observatório de Saúde na Infância - Observa Infância, da Fiocruz/Unifase, a partir de dados do SIM (Sistema de Informação sobre Mortalidade), do Ministério da Saúde.
No último dia 13, a Anvisa liberou o uso emergencial da vacina Coronavac, do Instituto Butantan, para as crianças de três a cinco anos. Porém, as que têm entre seis meses e dois anos continuam descobertas e possuem o dobro de risco de morte em relação às primeiras.
Em dois anos, 539 crianças morreram por Covid nessa faixa etária. Para efeito de comparação, entre 2012 e 2021, as outras 14 doenças com mortes evitáveis por vacina somaram 144 óbitos.
Segundo Cristiano Boccolini, pesquisador do Observa Infância, se o ritmo de mortes por Covid se mantiver no mesmo nível observado nos últimos dois anos, nos próximos três meses o país pode perder mais 76 crianças nessa faixa etária.
"Esse é o preço que o Brasil pode pagar enquanto espera a aprovação da vacinação para esse grupo. No cenário mais otimista, poderíamos ter a vacina nos braços dos nossos bebês daqui a três meses", diz ele.
Ao menos 13 países já vacinam crianças menores de cinco anos contra a Covid-19, entre eles Estados Unidos e Israel, que aprovaram a aplicação de doses a partir dos seis meses de idade.
No Brasil, até o momento, nenhuma farmacêutica solicitou autorização à Anvisa para uso da vacina a partir dos seis meses. Tanto a Pfizer quanto a Zodiac, representante da Moderna no país, dizem que devem fazer o pedido em breve, mas não definiram datas.
A vacinação contra a Covid já liberada para crianças entre três e cinco anos também encontra entraves. Há um público elegível de 5,6 milhões de pessoas –o que significa 11,2 milhões de doses, já que a Coronavac demanda duas aplicações.
Mas os municípios só dispõem de cerca de 1,5 milhão de doses e estão criando estratégias distintas para lidar com a escassez. São Paulo, por exemplo, começou a vacinar crianças de 3 e 4 anos com comorbidades e deficiências e as indígenas.
O Ministério da Saúde informou que o governo federal planeja remanejar as doses de Coronavac entre os estados. Já o governo de São Paulo solicitou ao Instituto Butantan a importação de 8.000 litros de IFA (insumo farmacêutico ativo) para a produção de 10 milhões de doses da vacina.
Em meio a isso, o país também enfrenta resistência dos pais em imunizar seus filhos contra a Covid. "O que a gente mais vê são mães preocupadas com a meningite, por exemplo, mas a Covid mata muito mais e não há essa sensibilização toda", diz Boccolini. Entre 2012 e 2021, 29 crianças morreram por meningite B no país.
Para o pesquisador, isso se deve muito às campanhas contrárias à vacina no final do ano passado e a uma contínua falta de empenho do governo federal no sentido de incentivar a imunização.
O governo Jair Bolsonaro (PL) chegou a distorcer dados e desestimular a imunização infantil contra a Covid. O presidente até mesmo ameaçou expor nomes dos servidores da Anvisa que aprovaram o uso de vacinas da Pfizer nos mais jovens.
Em grupos virtuais de mães, observa-se uma grande resistência na imunização dos filhos contra a Covid, às vezes com o aval de pediatras. É o caso da massoterapeuta Silvia (que pediu para não ter o sobrenome divulgado), 32, de São Paulo, mãe de um menino de quatro anos que tem anemia falciforme.
Segundo ela, o pediatra do filho não recomendou a vacinação com o argumento de que a Covid dificilmente mata crianças e que a segurança do imunizante não está comprovada.
O pediatra Renato Kfouri, que preside o departamento de imunizações da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), afirma que alguns médicos foram impactados por notícias falsas sobre a vacinação contra a Covid da mesma forma que parte da população.
"Continuamos nessa polarização política, que é uma desgraça para a saúde pública", afirma. Ele também observa uma inversão de valores entre os pais. "A gente viu a vida inteira os pais querendo proteger os filhos com vacinas e só depois pensavam neles. Agora a gente vê pais com duas, três doses, e que não querem dar nenhuma nos filhos."
Segundo o pediatra, o risco é que esse tipo de comportamento se repita para outras vacinas do calendário infantil, que já enfrentam queda de cobertura no Brasil e em outros países.
Neste ano, mais 300 crianças com menos de cinco anos morreram por Covid. "Isso não é pouco. E o sofrimento, as internações, as sequelas da doença, como a Covid longa?"
Patrícia Boccolini, também pesquisadora do Observa Infância, afirma que em grupos de pais essa resistência em relação à vacina contra a Covid tem aberto espaço para questionamentos sobre outras vacinas já estabelecidas.
"Parece que foi uma porteira que se abriu. Estão questionando vacinas mais novas, como a pneumocócica [contra pneumonia] e a do rotavírus, e as antigas também, como as da pólio e do sarampo."
Para ela, porém, a atual queda da cobertura vacinal vai além da hesitação dos pais devido a informações falsas. Passaria por questões como horários pouco flexíveis dos postos de saúde e pelo fato de que as pessoas não veem mais sequelas de doenças que já foram erradicadas, como a poliomielite.
Nas populações mais vulneráveis, outro fator que tem influenciado é o aumento da insegurança alimentar. "O que a gente vai comer amanhã? É um assunto mais imediato para essas famílias do que a questão da vacinação."
(Cláudia Colucci / Folhapress)