Ouro Preto – Irene do Sacramento deixou fluir suavemente a emoção. Os olhos brilhavam diante dos altares, os dedos apontavam as imagens, a voz embargada comentava sobre o forro do corredor da sacristia, que, ao longo de décadas, ficou escondido sob sete camadas de tinta. “Estamos felizes, pois nossa igreja matriz ganhou vida nova, encontra-se livre das infiltrações, do barro que descia do telhado, pelas paredes, na época das chuvas, dos cupins”, afirmou a senhora de 80 anos, provedora da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição e atuante na comunidade de Antônio Dias, em Ouro Preto, na Região Central de Minas.
A alegria de Irene veio completa, pois, no próximo dia 20, durante a missa das 19h, posterior à procissão com a imagem da padroeira, haverá uma bênção para comemorar o término da restauração do Santuário Matriz Nossa Senhora da Conceição, do século 18, após nove anos de obras estruturais e dos elementos artísticos. O resultado é um espetáculo de beleza absoluta, esmero, dedicação e cuidado com um bem cultural e espiritual da primeira cidade do país reconhecida como patrimônio mundial pela Unesco, título conquistado em 1980. No ar, uma devoção à construção barroca e o respeito às tradições.
O padre Edmar José da Silva, pároco e reitor do Santuário Nossa Senhora da Conceição, onde estão sepultados Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738-1814), e seu pai, o português Manuel Francisco Lisboa, falecido em 1767 e autor do projeto arquitetônico do templo, levou um grupo da comunidade para ver o restauro, que demandou recursos federais de R$ 7 milhões. Os serviços foram supervisionados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), responsável pelo tombamento em 1939, ficando a atual fase (elementos artísticos), iniciada em 2019, a cargo da Anima Conservação e Restauração, de São João del-Rei.
PENTE-FINO Padre Edmar fez um comunicado importante: “Vamos celebrar o final da obra, com a bênção do arcebispo de Mariana, Dom Aírton José dos Santos. As celebrações irão de 19 a 26 de agosto, mas, em seguida, fecharemos o santuário por um tempo. Será feita avaliação de todo o prédio, tipo operação pente-fino, para a equipe de restauro verificar todos os pontos. Ainda este ano, com data a ser divulgada, reabriremos para missas, casamentos, batizados e demais celebrações.
“O restauro reforçou a segurança e ampliou a beleza”, orgulha-se o pároco. Ao lado dele, Irene do Sacramento aprova a iniciativa e adianta que vai comemorar seus 81 anos, em 26 de dezembro, com missa. “Acompanhei a restauração em 1949 e outra, não tão completa, 30 anos depois. A atual, que começou em 19 de janeiro de 2013, ficou uma maravilha”, garante a provedora da irmandade.
No grupo de visitantes, a ministra da Eucaristia e integrante do Coral São Pio X Maria de Lourdes Marques não conteve as lágrimas ao admirar o retábulo-mor, que abriga a imagem da padroeira, os oito altares laterais (sob o de Nossa Senhora da Boa Morte está sepultado Aleijadinho), os lustres agora reluzentes, os oito painéis, a cimalha, a porta para-vento, na entrada o arco-cruzeiro e a tarja sobre ele. Ela lembrou que, pouco antes de começar a obra, os integrantes do coral foram advertidos por um funcionário do escritório técnico do Iphan, em Ouro Preto, sobre a situação do coro, onde estavam ensaiando. “Falou que o piso estava arriando. Ficamos muito preocupados. Agora, vem o alívio.”
Com o fechamento do santuário, incluindo os dois últimos anos de pandemia, as lojas do entorno perderam vendas, algumas sendo obrigadas a fechar as portas. “Esperamos que a reabertura da igreja traga de volta os turistas e faça o comércio florescer novamente. Moro aqui perto e vi as dificuldades”, destacou o coordenador leigo paroquial e prior da Ordem Mercedária, Mauro Francisco de Souza. Ressaltando as tradições do espaço sagrado, que recuperou, no início das intervenções, as cores originais da fachada (amarelo-ocre e branco), o sacristão Abel André de Melo comparou dois momentos nesta história: “Quando soubemos do início da restauração, o sentimento foi de júbilo. E ele nos preenche com o término das obras”.
MISSÃO CUMPRIDA Nas palavras dos voluntários e em cada canto da igreja, o clima é de missão cumprida. Com o coração em festa, padre Edmar mostra o forro do corredor em direção à sacristia, do qual foram retiradas sete camadas de tinta branca. “Pode ser que esse recurso tenha sido usado para clarear o ambiente, mas veja a diferença. Ninguém aqui nunca viu. Podemos ver a decoração (rocalhas) original, em suas formas e cores”, mostrou o padre.
Na sacristia, a equipe da Anima continua os trabalhos com afinco, sob o olhar atento da restauradora e coordenadora Isabel Cristina Aírton. “Sou de Ouro Preto, então a satisfação é dupla, pois trabalho desde 2019 num bem tão importante para a cidade. O santuário faz parte da minha identidade, da nossa cultura. A cada dia, fui conferindo ainda mais esta importância para todos”, contou Isabel ao percorrer a igreja com a equipe do EM.
Diante dos altares, Isabel explica que havia perda de suporte, o que se traduz por madeiras, douramentos e policromias – como inimigos da joia barroca, estavam o ataque de cupins, as infiltrações e as repinturas, que fizeram estragos generalizados. Nos ajustes finais do restauro da porta para-vento, usada para que as velas não se apaguem, a restauradora Lílian Oliveira, também de Ouro Preto, contou que essa é sua primeira experiência, o que alia o prazer do trabalho com a contribuição ao patrimônio municipal.
HISTÓRIA Vinculado à Arquidiocese de Mariana, o Santuário Nossa Senhora da Conceição, também chamado de Matriz Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias, foi erguido pelo grupo do bandeirante Antônio Dias no então arraial homônimo, como uma pequena capela devotada a Nossa Senhora da Conceição. Por volta de 1705, a ermida foi ampliada, reflexo do desenvolvimento local e da subsequente demanda pela constituição de uma paróquia própria. A freguesia de Antônio Dias, junto com a de Nossa Senhora do Pilar, passou a compor a recém-fundada Vila Rica, unificando, sob a mesma jurisdição política e administrativa, dois dos principais arraiais de Ouro Preto.
Em 1727, o templo começou a ser reconfigurado e ampliado por Manoel Francisco Lisboa, pai de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Nos anos seguintes, a igreja passou por diversas obras, intervenções e melhoramentos internos até a segunda metade do século 18. A Matriz Nossa Senhora da Conceição, tombada isoladamente pelo Iphan em 1939, foi sede de vários eventos históricos importantes, como a posse do governador Gomes Freire de Andrade, em 1735.
Também abriga os restos mortais de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738-1814), patrono das artes no Brasil, sepultado em frente ao altar de Nossa Senhora da Boa Morte; e de seu pai, Manoel Francisco Lisboa, na capela-mor. Um dos mais importantes exemplares da arquitetura religiosa brasileira – tanto sob o contexto arquitetônico no panorama das matrizes mineiras setecentistas quanto na excepcionalidade da qualidade artística do seu acervo de bens integrados –, a edificação passou por duas etapas de serviços de conservação e restauração.
Paralelamente às obras de restauro do Santuário Matriz Nossa Senhora da Conceição, Ouro Preto, na Região Central de Minas, deu um bom exemplo de conservação e preservação, mostrando que a comunidade é a melhor guardiã do seu patrimônio. Em 2021, o pároco e reitor Edmar José da Silva, há dois anos e meio à frente da paróquia, criou a campanha de apadrinhamento de 23 imagens sacras do século 18 pertencentes à igreja. A adesão foi tão grande (mais de 200 famílias), que o padre conseguiu os recursos bem antes do prazo programado. Algumas imagens já se encontram nos altares, outras continuam entregues às mãos dos restauradores. O trabalho foi acompanhado pelo EM desde maio de 2021.