Em setembro de 1822, quando o Brasil oficializava seu processo de emancipação de Portugal, nascia um país que ia muito além da nobreza do Rio de Janeiro, da mineração em Vila Rica ou dos latifúndios na Bahia. A sociedade brasileira era muito mais complexa e propensa a uma mobilidade social do que os livros didáticos costumam indicar, de acordo com o pesquisador e escritor Eduardo França Paiva, professor do Departamento de História da UFMG.
“Os brasileiros, de forma geral, têm uma ideia estereotipada sobre o que era o Brasil do século XIX. Mas é importante saber que desde o século XVIII havia a chegada de novas ideias e uma consolidação social e cultural nas cidades”, afirma o pesquisador, que possui diferentes livros sobre escravidão, mestiçagem e mobilidade social nos centros urbanos de Minas Gerais.
Segundo ele, o Brasil nasceu há 200 anos como uma potência econômica no continente. Não existia uma diferença tão acentuada entre o desenvolvimento econômico da América portuguesa e a dos Estados Unidos, que naquele momento viviam o processo de expansão territorial. “Essa diferença entre os dois vai se acentuar depois, com o Brasil tendo uma sociedade escravista e monárquica em uma América cada vez mais republicana”, diz.
França Paiva explica que a história contada nos livros didáticos sobre o início do século XIX tende a ter uma visão muito centrada no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Mas havia no país uma expansão do algodão no Maranhão, do açúcar na Bahia, do café em regiões ao sul, além de todo um processo de urbanização que fomentava as pequenas propriedades rurais.
“(No entorno das cidades) há serviços de toda a natureza, uma economia sustentável em pequena escala, que realiza um comércio regional de queijos, farinhas, cachaças, entre outros”, explica o historiador. “Muito do que se entende hoje sobre o queijo artesanal foi desenvolvido entre os séculos XVIII e XIX”.
Ao menos nos centros urbanos, havia uma mobilidade social maior do que a produção historiográfica indicava no passado - inclusive, entre os negros. De acordo com França Paiva, existem casos de trabalhadores das cidades eram ex-escravos ou descendentes de ex-escravos que conseguiam comprar as alforrias e ascender socialmente através do trabalho.
Não era raro ver um ex-escravo comprar escravos após ascender socialmente. Esse fato pode parecer estranho a quem vive no século XXI, mas vale lembrar que o regime escravocrata não era questionado pela maioria da população no momento em que o país se tornou independente. Por sinal, o desejo de manutenção da escravidão foi um dos motivos para que o país preferisse ser emancipado dentro de um regime de monarquia, em vez de uma república - adotada por todos os vizinhos.
E com essas transformações sociais nas cidades, naturalmente surgiam as demandas por mudanças políticas. Desde o século XVIII, existia em diversas províncias uma circulação de ideias por meio de livros e através daqueles que liam em voz alta para os que não sabiam ler. Pessoas eram inspiradas por iluministas e por notícias que chegavam da Europa e dos Estados Unidos. Acontecimentos como a Independência das 13 Colônias, em 1776, e a Revolução Francesa, em 1789, foram inspiradoras na América Portuguesa.
“O Brasil do início do século XIX caminhava no sentido de conseguir mais autonomia e, por isso, surgiram movimentos separatistas, como a Inconfidência Mineira e a Baiana, para depois ter a Revolução Pernambucana”, afirma.
Para o historiador, algumas lacunas sobre a sociedade daquela época ainda demandam maior atenção dos pesquisadores. Como as mulheres, que tiveram grande protagonismo na sociedade colonial a partir do século XVIII, segundo ele. O papel dos indígenas no processo histórico brasileiro também. “Nossa documentação oculta a presença dos indígenas. Mas, ao mesmo tempo, sabemos que a mestiçagem com os índios foi muito forte”.