O superávit primário do Brasil - resultado positivo de todas as receitas e despesas do governo exceto pagamento de juros - somou R$ 64,4 bilhões no acumulado dos últimos 12 meses. O desempenho que mantém as contas "no azul", no entanto, não impediu que o Ministério da Economia bloqueasse R$ 5,66 bilhões no orçamento destinado aos gastos não constitucionais e que financiam serviços e programas públicos de 20 pastas do Executivo, por ser direcionado ao pagamento de juros da dívida pública e redução do endividamento.
Desde janeiro, a retenção na receita ministerial já chega a R$ 15,3 bilhões. O contingenciamento ocorre devido às regras do teto de gastos públicos que proíbe um gasto federal superior ao orçamento do ano anterior corrigido pela inflação. Outro fator que direcionou para o contingenciamento foi a necessidade de encaixe, ainda no orçamento deste ano, de R$ 3,8 bilhões da Lei Paulo Gustavo aos Estados e municípios para minimizar os impactos da pandemia ao setor cultural, determinado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) após uma tentativa do governo de protelar o pagamento para 2023.
Professor de economia e analista aposentado do Banco Central, Paulo César Feitosa frisa que os bloqueios impactam diretamente algumas atividades. A emissão de passaportes foi suspensa pela Polícia Federal em 19 de novembro e não há previsão de retomada do serviço. Na educação, universidades federais alegam que podem não conseguir arcar com custos básicos, como contas de água, luz e contratos de segurança, mesmo com parte da verba desbloqueada.
Ele lembra que a retenção financeira ocorre em meio à melhor arrecadação do governo federal desde 1995, que ultrapassou R$ 1,8 trilhão em outubro, e antecipação do recebimento dos dividendos de estatais - R$ 48 bilhões só da Petrobras. Para ele, a tendência de aumento da dívida previdenciária no país, levando em consideração o envelhecimento da população, já consome praticamente todo o crescimento da despesa dentro dos limites da inflação permitidos pelo teto. Atualmente, no país, cerca de 5 milhões de pessoas aguardam processos de aposentadoria em análise no INSS.
O cenário, inclusive, dificulta os reajustes de salários do funcionalismo, congelados desde 2018. “Se você só pode aumentar o gasto de um ano para o outro com base no aumento da inflação, significa que se a inflação for zero, não se pode aumentar os gastos do governo de um ano para o outro. Mas a população está aumentando e o gasto por habitante está caindo. E se isso acontece, o nível de qualidade do serviço público está pior. E isso afeta, em especial, os mais pobres e especialmente em saúde e educação”, frisa Feitosa.
O analista aposentado do Banco Central, inclusive, sugere alterações nas normas de controle fiscal. “O teto de gastos, naquele momento (em 2016), podia até ser uma solução de emergência. Seria ótima e já foi usada em outros países para um prazo imediato que não passasse de um ano. Mas aqui não só foi implementada, mas constitucionalizada por 20 anos”, criticou Feitosa.
Economista e professora de MBAs da Fundação Getúlio Vargas, Carla Beni Menezes diz que o Brasil passa por uma bagunça orçamentária “gigantesca”. Segundo ela, a situação é ainda mais grave do que mostram os números. “No superávit, em grande parte, o responsável foi justamente a lucratividade gigantesca da Petrobras. E como o Ministério da Economia trabalhou para mudar a periodicidade de repasse dos dividendos, o que era da Caixa, do Banco do Brasil, que você tinha que receber só no ano que vem, o governo antecipou para dar um resultado melhor”, observou Beni.
Em meio às discussões da equipe de transição do governo eleito sobre a descontinuidade do teto de gastos públicos, os especialistas frisam que é preciso uma maior flexibilidade para as despesas do governo. Paulo César Feitosa defende que a âncora fiscal deixe de seguir a inflação, mas esteja associada ao crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Segundo o analista aposentado do Banco Central, também há possibilidades de relacionar o gasto do Executivo à evolução da dívida pública.
“Se a evolução for positiva, você terá uma margem para aumentar um valor a mais no teto. Mas se a evolução não corresponder ao necessário, você tem limites de flexibilidade menores”, sugere. O pensamento é semelhante ao de Carla Beni, da Fundação Getúlio Vargas. “Uma nova âncora fiscal deveria abraçar metas de endividamento público de médio prazo, com estratégias de desenvolvimento econômico e social a longo prazo”, indica a professora.
Quatro dias após bloquear R$ 344 milhões de universidades e institutos federais, o governo voltou atrás e desbloqueou a receita que começou a retornar ao caixa das instituições nesta quinta-feira à tarde. No entanto, de acordo com o jornal Estado de São Paulo, a verba foi novamente retida à noite. Desde que o contingenciamento foi anunciado, reitores denunciaram risco de não conseguir pagar contas básicas, como água e luz, e cumprir com contratos de serviços terceirizados de segurança e limpeza, por exemplo.
Em nota, a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) chegou a afirmar, ao saber do desbloqueio, que “seguirá atenta aos riscos de novos cortes e bloqueios e manterá o diálogo com todos os atores necessários, no Congresso Nacional, governo, sociedade civil e com a equipe de transição do governo eleito para a construção de orçamento e políticas necessárias para a manutenção e o justo financiamento do ensino superior público”.
Conforme a associação, as universidades federais “continuam no aguardo da restituição do valor de R$ 438 milhões, bloqueado em junho deste ano”, diz a nota.