Admirador confesso do “gênio modernista” e especialista em sua obra, o arquiteto e professor mineiro Flávio Carsalade explica que Oscar Niemeyer, juntamente com Lúcio Costa (1902-1998), integrou a equipe que projetou o Edifício Gustavo Capanema (construído entre 1937-1945, no Centro do Rio de Janeiro), para ser sede do então Ministério da Educação e Saúde. “Trata-se de um marco na arquitetura brasileira, um trabalho coletivo histórico, mas foi na Pampulha que Niemeyer se destacou como arquiteto.” Depois do Rio e Brasília, Belo Horizonte é a capital com maior número de obras de Niemeyer. O arquiteto trabalhou aqui nos anos 1940, 1950 e 1960, a convite de Juscelino Kubitschek (1902-1976), quando esse era prefeito da capital (1940-1945) e governador de Minas (1951-1955), antes de se tornar presidente da República (1956-1961). No século 21, saíram da sua prancheta os projetos da Cidade Administrativa Presidente Tancredo Neves, sede do governo mineiro, no Bairro Serra Verde, na Região de Venda Nova, e a Catedral Cristo Rei, em construção, na Região Norte. Para Carsalade, que coordenou o dossiê sobre a Pampulha, peça fundamental para o reconhecimento como Patrimônio Mundial, em 2016, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Niemeyer é sempre atual, tendo seus trabalhos uma “jovialidade que se perpetua” e está presente no Conjunto Moderno da Pampulha. Às margens da lagoa, estão o Santuário Arquidiocesano São Francisco de Assis – a Igrejinha da Pampulha –, o Museu de Arte da Pampulha (MAP, antigo cassino), a Casa do Baile, atual Centro de Referência de Arquitetura, Urbanismo e Design, e o Iate Tênis Clube. “O conjunto apresenta – e representa – Belo Horizonte ao mundo”, resume.No livro “As curvas do tempo – Memórias” (1998), Niemeyer registrou: “Para mim, a Pampulha foi começo da minha vida de arquiteto. E com que entusiasmo a começava. O início dessa longas viagens de carro, a balançar pelas estradas de terra, às vezes cobertas de lama, obrigando-nos a parar e procurar auxílio. Até para junta de bois um dia apelamos!”
PELA ORLA A interação de moradores e visitantes com a obra de Niemeyer é tecida em admiração, encantamento e preocupação constante com a preservação, a começar pela Pampulha, onde ficam os primeiros trabalhos do arquiteto em BH – os bens são tombados pelo Município, Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG) e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). À sombra das árvores da Praça Dino Barbieri, o casal de noivos Victor de Lemos, militar, e Débora Souza, técnica de enfermagem, residente em Cachoeiras de Macacu (RJ), contempla a Igrejinha da Pampulha, que completará 80 anos no ano que vem. “Já estivemos no interior do templo, passeamos em volta. É um encantamento,traz uma leveza impressionante”, observa Débora, na sua primeira visita à região, enquanto Victor enaltece o trabalho de Niemeyer e fala da importância da conservação. Com projeto arquitetônico do carioca falecido há exatos 10 anos, a igrejinha, cartão-postal da cidade, reúne a arte de Cândido Portinari (1903-1962), autor dos 14 quadros recriando as cenas da via-sacra, da pintura de São Francisco com um cachorro e do painel externo em azulejos, homenageando o padroeiro; do escultor Alfredo Ceschiatti (1918-1989), criador dos baixos-relevos em bronze do batistério; de Paulo Werneck (1903-1962), que, na parte externa, fez o revestimento em pastilha; e do paisagista Roberto Burle Marx (1909-1994), responsável pelos jardins. Nesse primeiro passeio à Pampulha, Victor e Débora ficaram um pouco desapontados, a exemplo de outros turistas: com seus belos jardins concebidos por Burle Marx, o Museu de Arte da Pampulha (1940) está fechado. “Chegar aqui e não poder visitá-lo é frustrante”, lamentou o aposentado Gumercindo Basso Júnior, que veio de Sorocaba (SP) com a esposa e casal de amigos. Na segunda vez em BH, o engenheiro José Carlos de Jesus aproveitou para apreciar os jardins e a extensão da lagoa. A Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) informa que a Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap) coordena o processo de atualização do projeto de restauro do MAP, “em um trabalho de revisão e detalhamento rico e complexo, que contempla diversos tipos de verificações e ensaios sobre os elementos originais do prédio, incluindo cobertura, impermeabilização, estrutura e acabamento, sistema de proteção contra descargas atmosféricas, entre outros, que são fundamentais para a segurança e preservação da edificação”. O trabalho conta com a contribuição de consultores especialistas contratados, e o acompanhamento das equipes dos órgãos de proteção ao patrimônio cultural. E mais: “A primeira versão do projeto básico para restauro foi apresentada aos órgãos de proteção do patrimônio e, nos últimos meses, foram realizadas reuniões técnicas para especificação de melhorias no MAP em conformidade com os requisitos de proteção ao patrimônio. A elaboração do projeto avança a partir das concepções das soluções, que são detalhadas após a anuência do Patrimônio Municipal, Iepha (estadual) e Iphan (federal), que são discutidas nas reuniões técnicas. Atualmente, a Sudecap está detalhando as soluções que foram deliberadas nas reuniões técnicas, e irá protocolar nova proposta de projeto de restauro nos órgãos citados para o parecer formal de aprovação ou solicitação de retificação.” Também de 1940 e localizado na orla da Pampulha, o Iate Tênis Clube, particular, abre as portas aos visitantes, mas tem uma pendenga com a PBH e o Ministério Público que já dura anos. O pomo da discórdia está no anexo, popularmente chamado de “puxadinho”, construído na década de 1970 sem autorização dos órgãos de defesa do patrimônio cultural. A PBH quer demoli-lo. Sobre o impasse, a assessoria da prefeitura explica que aguarda decisão da Justiça.
PALAVRAS ECOAM Ainda em “As curvas do tempo – Memórias” (1998), Niemeyer falou sobre o nascimento da Pampulha, e de um diálogo com o então prefeito Juscelino Kubitschek. “Tornei a conversar com JK, que me explicou: ‘Quero criar um bairro de lazer na Pampulha, um bairro lindo como outro não existe no país. Com cassino, clube, igreja e restaurante, e precisava do projeto do cassino para amanhã’. E o atendi, elaborando durante a noite no quarto do Hotel Central o que me pedira”. E mais escreveu o arquiteto: “Nunca tinha visto tanto entusiasmo, tanta vontade de realizar, tanta confiança num empreendimento que, no momento, muitas dificuldades teria pela frente. E a obra começou. JK a segui-la diariamente (...). Quantas vezes visitamos a obra da Pampulha! E JK não se continha: ‘Que beleza! Vai ser o bairro mais bonito do mundo!’” Parece que as palavras ecoam nos ares da Pampulha tantas décadas depois, embora a paisagem tenha mudado tanto, com o crescimento da região, e a poluição crescente da lagoa. No mirante diante do Museu Casa Kubitschek (imóvel, de 1941, projetado por Niemeyer para ser residência de veraneio da família do então prefeito), encontram-se as esculturas em bronze de JK entre o arquiteto e Burle Marx, olhando a planta do bairro, e Portinari (sentado). Descansando de caminhada, a engenheira química que atua na área ambiental, Rosane Borges, gaúcha residente há 10 anos em BH, elogia a integração de arquitetura e natureza. “Niemeyer foi um grande brasileiro. É o nosso Gaudí”, disse em referência ao espanhol Antoni Gaudí (1852-1926), expoente do modernismo catalão.Na Pampulha são também obras de Niemeyer o Pampulha Iate Clube e a Residência Alberto Dalva Simão. Não saíram do papel o hotel e o Golf Clube, na área pertencente à Fundação Zoobotânica.
Rumo ao Centro da capital
Depois da Pampulha, é hora de conhecer outros ícones de BH com a assinatura de Oscar Niemeyer. A primeira parada é no Edifício ou Conjunto JK, no Bairro São Agostinho, na Região Centro-Sul. Em 27 de abril deste ano, o Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte (CDPCM-BH) aprovou o tombamento definitivo do Conjunto Habitacional Governador Juscelino Kubitschek. As duas edificações, que compõem o conjunto, ficam nas ruas dos Timbiras, 2.500, e dos Guajajaras, 1.268, tendo 1.149 unidades habitacionais de 13 modelos diferentes, de quitinetes a apartamentos. “Ele merece destaque pela pluralidade de seus moradores e pela socialização que o projeto permite”, comemorou, na época, o morador do local há 40 anos, Sérgio Hirle, formado em administração. Ele contou que o prédio horizontal, chamado de Bloco A, tem 23 andares e entrada pela Timbiras, enquanto o B, com 36 andares, tem acesso pela Guajajaras e Praça Raul Soares. Diante dos prédios, o estudante Guilherme Cardoso Oliveira Costa, de 18 anos, mostra que conhece bem a importância do arquiteto Oscar Niemeyer para BH, cita trabalhos de destaque em Minas e considera fundamental que sejam bem preservadas. “A obra dele é patrimônio nosso e do mundo! Marca nossa capital com suas famosas curvas de concreto. Devemos valorizar sempre, embora nem tudo esteja bem conservado”, proclama o aluno do 3º ano do ensino médio, que, diariamente, passa, rumo à escola, pelo local. Subindo a Avenida Bias Fortes, a equipe do Estado de Minas visita o Edifício Niemeyer, de 1954, na Praça da Liberdade, onde encontra, em momento de puro relax e conversas sobre a vida, confortavelmente sentadas num banco, a artista plástica e dançarina de flamenco Manu Cordeiro e a aluna Domitila Clemente, artista e produtora. Olhando para o prédio residencial, Manu gosta do que vê “Esse tipo de arquitetura me conforta, promove um diálogo, tem comunicação”. Domitila, por sua vez, admira com ressalvas. Gosta das curvas, porém se sente um pouco incomodada, preferindo as quinas, “que têm princípio e fim”. Já no fervilhante Centro de BH, vê-se o antigo prédio do Bemge, de 1953, construído para ser a sede do Banco Mineiro da Produção. Com a bem-cuidada obra de restauração, a edificação de 25 andares na Praça Sete se tornou o P7 Criativo – Agência de Desenvolvimento da Indústria Criativa de Minas Gerais, misturando charme dos anos 1950 com tecnologia do século 21. O edifício é tombado pelo Iepha-MG. Na Região Centro-Sul, a última parada é na Escola Estadual Governador Milton Campos (Estadual Central, de 1954), no Bairro Lourdes, cujos traços remetem ao ambiente escolar: o prédio das salas de aula é uma régua, o giz virou caixa-d’água, a cantina tem forma de borracha e o auditório, de um mata-borrão (instrumento que servia para secar o excesso de tinta no papel). O colégio também mereceu comentário no livro de memórias. “Para tudo JK me convocava, já era seu arquiteto preferido. E outras obras por ele programadas começaram a surgir pelo estado. Em Belo Horizonte, projetei a reforma da Casa das Mangabeiras, onde ele morou; a biblioteca; o Colégio Estadual; o teatro – depois completamente desfigurado; o Banco da Produção, em Juiz de Fora; o Banco do Brasil, em Diamantina, sua cidade natal, e, também lá, o clube, a escola e o hotel”.
SÉCULO 21 Todas as gerações têm a oportunidade, agora, de conhecer uma “obra em progresso” a partir de um projeto de Niemeyer. Há nove anos, está em andamento, no Bairro Juliana, a construção da Catedral Cristo Rei, da Arquidiocese de BH. A convite do arcebispo metropolitano de BH, dom Walmor Oliveira de Azevedo, Niemeyer apresentou, em 2010, uma concepção arquitetônica para, três anos depois, a “igreja-mãe” começar a ser construída no epicentro geográfico da Arquidiocese de BH, que contempla a capital mineira e outros 27 municípios. Conforme a Arquidiocese de BH, a expectativa é de que em fevereiro, quando se celebram 102 anos de sua criação, esteja liberada para comemorações a Tenda da Paz, que receberá os peregrinos.Do alto do Bairro São Cosme, no município vizinho de Santa Luzia, moradores podem ver, em sua plenitude, a Cidade Administrativa Presidente Tancredo Neves, inaugurada em 4 de março de 2010. O complexo arquitetônico é formado pelo Palácio Tiradentes (o maior prédio suspenso do mundo, com um vão livre de 147 metros de comprimento e 26 metros de largura), os prédios Minas e Gerais, que abrigam as secretarias e órgãos do estado em duas torres com 15 andares cada uma e 240 metros de extensão em curva, o prédio de serviços, centro de convivência e o Auditório JK.