Um vírus circula na China, enquanto pipocam imagens de hospitais lotados, o governo divulga alguns dados sobre a situação — mas não todos — e cientistas ao redor do mundo especulam o que a crise no país asiático significará para todos nós. Essa é uma história que poderia ser contada tanto em dezembro de 2019, quando o SARS-CoV-2 tornou-se conhecido da Organização Mundial da Saúde (OMS), quanto no final de 2022, quando milhões de chineses estão sendo infectados pelo coronavírus após o governo abandonar sua política de “Covid zero”, que manteve rígidas restrições de circulação por mais de dois anos. Agora, novamente o mundo fica atento à China e se pergunta quais consequências globais a situação no país acarretará.
As primeiras projeções sobre o novo momento da pandemia na China indicam que mais de um milhão de pessoas podem morrer por Covid no país nos próximos meses — desde o começo da pandemia, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o país de 1,4 bilhão de pessoas teve 31,5 mil óbitos. A China começou a pandemia com um dos mais baixos números de leitos de UTI por pessoa no mundo, quase dez vezes menor que o dos EUA, e hoje imagens do noticiário internacional exibem quartos de hospital lotados, ao mesmo tempo em que filas se formam nos crematórios chineses. Na última semana, autoridades chinesas estimaram que 37 milhões de pessoas foram infectadas em um único dia.
Às vésperas da virada para 2023, especialistas consultados pela reportagem concordam que o Brasil não voltará a viver o caos de 2020 e 2021, com o alto número de mortes por Covid e necessidade de restrições de circulação para não esgotar o sistema de saúde. Mas, na esteira da desordem na China e com as festas de final de ano favorecendo aglomerações, este é o momento de expandir a aplicação das doses de reforço para minimizar um possível repique de infecções.
“Mesmo o que tivemos em novembro e agora, com alta de casos, foi um repique. Eu não chamaria de onda. Talvez tenhamos um aumento de casos, talvez um pequeno aumento de internações e óbitos. É necessário ter uma gestão individual de riscos: alguém mais velho ou com imunossupressão tem que se cuidar e deveria evitar aglomeração ou utilizar uma máscara ao frequentá-las. Pessoas sintomáticas não deveriam chegar perto”, avalia o vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), Alexandre Naime Barbosa.
A cobertura vacinal dos brasileiros orgulha os especialistas, mas eles ponderam que o nível de aplicação das doses de reforço permaneça abaixo do ideal — a terceira dose, ou primeira dose de reforço, foi aplicada em pouco menos de 57,5% da população vacinável, segundo dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O Brasil começou a receber doses de vacinas bivalentes, nova geração de imunizantes que, em testes de laboratório, parecem conter melhor inclusive as formas leves da doença. Mas especialistas recomendam que os brasileiros que já podem tomar as doses de reforço não aguardem a chegada dessas opções aos postos e se vacinem imediatamente com os imunizantes que já estão disponíveis, especialmente com a ameaça de uma nova variante emergir do caos na China.
“Até o momento, as variantes têm tido um comportamento mais ou menos previsível. Elas escapam da imunidade em geral e as vacinas não têm alta prevenção de casos, mas os vacinados são mais resistentes às formas graves da Covid, por isso estamos avançando para a terceira, quarta dose. Tem que tomar, sim. É a partir dessa quantidade de estímulo que conseguimos nos proteger mesmo com o escape”, enfatiza o infectologista Antônio Carlos Bandeira, membro da SBI.
Ainda que a crise na China não se traduza em uma explosão de casos no Brasil e em outros países, a situação na Ásia pode levar a dificuldades na obtenção de itens que não são utilizados somente contra a Covid, reflete o infectologista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Julio Croda. “Podem faltar insumos estratégicos de proteção individual e medicamentos, como ocorreu no passado”, pontua o médico.
Subvariantes da ômicron são responsáveis pela escalada da Covi-19 na China atualmente, segundo os dados oficiais. Mas pode ser questão de tempo até que novas variantes surjam no país — ou em outros locais onde a transmissão esteja descontrolada. O vírus pode sofrer mutações a cada vez que se replica no corpo de um infectado e quando é transmitido para outras pessoas. As mutações ocorrem ao acaso e, quando alguma delas favorece a multiplicação do coronavírus, tende a se tornar predominante. Por isso, as variantes de preocupação que têm surgido desde o começo da pandemia são uma mais transmissível que a outra.
Não existe garantia de que não surgirá uma variante que seja eventualmente mais letal que as anteriores. O padrão até agora, porém, não é esse. Especialistas também ponderam que, até que uma nova variante seja identificada, ela provavelmente estará em outros países. E pode, inclusive, já estar circulando neste momento. “Será que já não temos uma variante? Se ela já não existe, provavelmente existirá. Mas ela "vingará"? Provavelmente não em países que têm cobertura com dose de reforço”, analisa o vice-presidente da SBI, Alexandre Naime Barbosa.
Enquanto o mundo reabria as portas na medida em que a vacinação da população aumentava, a China manteve medidas rígidas e promovia lockdowns de regiões inteiras com milhões de habitantes até o início deste mês. Em meio a protestos populares, o governo chinês anunciou o fim de uma série de medidas de sua política de “Covid zero”. Agora, as pessoas podem fazer quarentena em casa, em vez de em centros públicos e viajantes não precisarão mais ficar isolados ao chegar ao país a partir de janeiro, por exemplo.
Especialistas concordam que, do ponto de vista econômico, trancar as pessoas em casa por longos períodos não é a melhor alternativa e a opção precisaria ser repensada eventualmente. Mas pesquisadores pontuam que a mudança deveria ter sido mais gradual. “É uma mudança radical e a China não tem um sistema de saúde robusto. O risco é de sobrecarga muito rapidamente. A política de "Covid zero" era necessária, mas a China errou na prática, porque, apesar de mais de dois anos de pandemia, não vacinou adequadamente principalmente sua população mais idosa”, considera o infectologista da Fiocruz Julio Croda. A China chegou à atual onda da pandemia com apenas 40% de sua população com mais de 80 anos com a primeira dose de reforço, em meio a desconfiança sobre os imunizantes.
Os especialistas consultados pela reportagem também lembram que, no Brasil, por exemplo, além de o índice de vacinação ser mais alto, grande parte da população teve contato com o próprio vírus desde 2020, o que reforça a imunidade híbrida — o que não é a mesma coisa, contudo, que defender que as pessoas se “imunizassem” contraindo a doença antes de se vacinar, o que poderia levar a casos graves. Na China, em que a população conseguiu se manter mais longe do vírus, a imunidade híbrida é menos comum.
Outro fator que pesa contra o país asiático é a utilização exclusiva de vacinas de vírus inativado, como a Coronavac. No início da pandemia, quando países como o Brasil não tinham ampla disponibilidade de opções de vacina, elas foram aliadas para conter casos graves da doença. Mas, hoje, já existe maior oferta de vacinas como a da Pfizer e da Moderna, que utilizam a tecnologia do RNA mensageiro e se provaram ainda melhores para conter a gravidade da doença, especialmente na população idosa. “As doses de reforço são mais eficazes com elas”, finaliza o vice-presidente da SBI, Alexandre Naime Barbosa.