Apesar de atuar com protagonismo na crise dos Yanomami, a demora do STF (Supremo Tribunal Federal) em analisar temas de interesses dos indígenas tem deixado comunidades sob risco de conflitos com ruralistas, afirmam entidades que acompanham os casos.
O mais importante deles é o processo do marco temporal, que discute se a data da promulgação da Constituição de 1988 deve ser usada para definir a ocupação tradicional da terra por indígenas.
A tese do marco temporal tem aval de ruralistas e é rechaçada por indígenas. A decisão do Supremo sobre o tema incidirá em todos os processos semelhantes.
O caso só começou a ser julgado no STF em 2021, inicialmente na plataforma virtual da corte, quando o ministro Alexandre de Moraes pediu para ir ao plenário físico.
Quando a análise foi retomada, o relator do processo, Edson Fachin, refutou a tese do marco temporal. Ele disse que uma interpretação restritiva sobre os direitos fundamentais dos povos indígenas atenta contra a Constituição e contra o Estado democrático de Direito.
Kassio Nunes Marques, o segundo a votar, reafirmou o marco temporal, em um posicionamento que se alinhava aos interesses do Palácio do Planalto, sob Jair Bolsonaro (PL). Moraes, então, pediu vista (mais tempo para análise).
No primeiro semestre do ano passado, o então presidente da corte, Luiz Fux, chegou a pôr o processo novamente em pauta, mas semanas antes da votação o retirou da previsão de julgamento.
À época, o então presidente Bolsonaro vinha fazendo diversos ataques à corte afirmando que, se o voto de Fachin prosperasse, "seria o fim do agronegócio".
Ao assumir no ano passado a presidência do Supremo, Rosa Weber se comprometeu com líderes indígenas a pôr novamente o marco temporal em pauta. No entanto, o processo não consta na relação de processos a serem julgados pela corte até o mês de julho - divulgado recentemente. Procurado, o Supremo afirma que "a pauta do semestre é dinâmica e vai sendo alterada ao longo dos meses".
"Além disso, há várias datas sem pauta justamente para inclusão de novos temas. A presidente do STF, ministra Rosa Weber, informou que levará a julgamento o processo do marco temporal ainda em sua gestão, que termina em outubro de 2023", afirma a corte em nota.
"O tema, portanto, ainda pode ser julgado neste semestre ou nos primeiros meses do próximo." A falta de conclusão no julgamento do STF sobre o caso é usada em diversos casos pelo país para contestar as áreas ocupadas por comunidades, o que aumenta a tensão e a possibilidade de conflitos.
A Terra Indígena Kayabi, por exemplo, teve sua primeira demarcação concluída em 1982 e, depois, em 2013, uma nova portaria ampliou sua extensão. O Estado do Mato Grosso contesta a segunda portaria afirmando, justamente, que, "em 1988, já não havia mais índios [no local] há longo tempo".
"Para conseguirmos ter um panorama das consequências dessa demora no julgamento, vou citar o caso dos Pataxós do sul da Bahia. Existe ali uma milícia armada dos fazendeiros que conseguiram cooptar agentes da segurança pública e estão promovendo uma série de violações aos direitos humanos e à vida", afirma Maurício Terena, advogado da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil).
Como o marco temporal é usado como base argumentativa em ações de reintegração de posse contra indígenas, por exemplo, quanto mais tempo demora para ser julgado, outras ações que correm até mesmo em varas menores ficam pendentes de resolução ou abrem brecha para decisões desfavoráveis aos povos.
Além disso, argumenta Terena, a falta de conclusão da análise cria nos invasores dos territórios a expectativa de que o desfecho seja favorável a eles e, assim, os incentiva a já ocupar ilegalmente as áreas mesmo antes da decisão.
"São casos que precisam ser julgados, [já que] a demora gera mais invasões dessas terras. Se as pessoas tiveram coragem de invadir o STF, imagina uma terra indígena com pessoas vulneráveis", diz Juliana de Paula, advogada do ISA (Instituto Socioambiental).
Enquanto isso, alguns tribunais têm aberto processo de conciliação em casos de disputa de terra, mecanismo com efeito semelhante na dinâmica dos conflitos. (Folhapress/José Marques e João Gabriel)