Funcionários e ex-funcionários do Twitter disseram à BBC que a empresa não é mais capaz de proteger os usuários de assédio, desinformação coordenada e exploração sexual infantil após as demissões e mudanças feitas pelo novo proprietário, Elon Musk.
Dados acadêmicos exclusivos e testemunhos de usuários do Twitter apóiam suas alegações, sugerindo que o discurso de ódio está crescendo sob a liderança de Musk, com intensificação do assédio e um aumento de contas que seguem perfis misóginos e abusivos.
Dezenas de funcionários e ex-funcionários da empresa afirmaram à BBC que está difícil manter o funcionamento dos mecanismos destinados a proteger os usuários do Twitter contra abuso e assédio em meio ao que eles descrevem como um ambiente de trabalho caótico.
O tempo todo cercado por guarda-costas, Musk é inacessível. Vários dos trabalhadores com quem a BBC conversou falaram publicamente pela primeira vez.
A ex-chefe de conteúdo diz que todos em sua equipe foram demitidos, o que a levou a renunciar.
Sua equipe era responsável por criar diversas medidas de segurança, como uma mensagem que perguntava se a pessoa tem certeza que quer responder a uma postagem de maneira agressiva.
Uma pesquisa interna do Twitter sugere que essa medida de segurança reduziu as respostas agressivas em 60%.
Um engenheiro que ainda trabalha para o Twitter disse que ninguém está responsável por esse tipo de trabalho agora, comparando a plataforma a um prédio que parece bom por fora, mas por dentro "está pegando fogo".
A BBC procurou o Twitter para comentar o assunto, mas a empresa não respondeu até a publicação desta reportagem.
A investigação da BBC também revelou:
A repórter da BBC Marianna Spring, especializada em cobrir redes sociais e desinformação, pediu ajuda para uma equipe do Centro Internacional para Jornalistas e da Universidade de Sheffield para rastrear o ódio direcionado a ela nas redes.
O resultado do estudo mostrou que o discurso de ódio contra ela no Twitter mais do que triplicou desde que Elon Musk assumiu a empresa, em comparação com o mesmo período do ano anterior.
Todos os sites de mídia social estão sob pressão para combater o discurso de ódio online, mas eles dizem que estão tomando medidas para lidar com isso. Medidas que parecem não estar mais em pauta no Twitter.
Em São Francisco, cidade da sede do Twitter, Marianna Spring conversou com um engenheiro responsável pela programação, ou seja, os códigos de computador que fazem o Twitter funcionar. Como ele ainda está trabalhando na empresa, ele pediu anonimato, então o chamaremos de Sam.
"Para alguém de dentro, é como um prédio onde todas as partes estão pegando fogo", disse ele. "Quando você olha de fora, a fachada parece boa, mas vejo que nada está funcionando. Todo o encanamento está quebrado, todas as torneiras, tudo."
Ele diz que o caos foi criado pelas enormes demissões. Pelo menos metade da força de trabalho do Twitter foi demitida ou pediu demissão desde que Musk comprou a empresa. Agora, as pessoas de outras equipes estão tendo que mudar seu foco, diz ele.
"Uma pessoa totalmente nova, sem experiência, está fazendo o que costumava ser feito por mais de 20 pessoas", diz Sam. "Isso gera muito mais riscos, muito mais possibilidades de coisas deem errado."
Ele diz que os mecanismos anteriores de segurança ainda existem, mas as pessoas que os projetaram e os mantinham funcionando deixaram a empresa.
"Há tantas coisas quebradas e ninguém cuidando disso", diz ele.
O nível de confusão, em sua opinião, é porque Musk não confia nos funcionários do Twitter. Ele diz que Musk trouxe engenheiros de sua outra empresa - a fabricante de carros elétricos Tesla - e pediu-lhes que avaliassem os códigos apenas alguns dias antes de decidir quem demitir. "Códigos como esses levariam 'meses' para entender", ele diz.
Ele acredita que essa falta de confiança é evidente pelo distanciamento de Musk.
"Onde quer que ele vá no escritório, há pelo menos dois guarda-costas altos e fortes, como de filme. Mesmo quando [ele vai] ao banheiro", diz o funcionário.
Ele acha que tudo é uma questão financeira. Diz que os funcionários da limpeza e do bufê foram todos demitidos e que Musk tentou até vender as plantas do escritório aos funcionários.
Lisa Jennings Young, ex-chefe de conteúdo do Twitter, foi uma das pessoas que se especializou na introdução de recursos projetados para proteger os usuários de discurso de ódio.
O Twitter era um espaço cheio desse tipo de conteúdo muito antes de Musk assumir, mas ela diz que sua equipe fez um bom progresso em controlar o problema. A pesquisa interna do Twitter, vista pela BBC, parece dar base para essa fala.
"Nada era perfeito, mas estávamos tentando. E melhorando as coisas o tempo todo", diz ela. É a primeira vez que ela fala publicamente sobre sua experiência desde que saiu.
A equipe de Young trabalhou em vários novos recursos, incluindo o modo de segurança, que pode bloquear automaticamente contas abusivas. Eles também criaram rótulos aplicados a tuítes enganosos e o alerta os usuários antes que eles enviem postagens que a tecnologia de IA detectou como tendo linguagem abusiva.
"No geral, 60% dos usuários excluíram ou editaram suas respostas quando tiveram uma chance de repensar", diz ela. "Mas o mais interessante é que, depois do alerta, as pessoas escreviam 11% menos respostas abusivas no futuro."
Mas depois que Musk assumiu a empresa de mídia social no final de outubro de 2022, toda a equipe de Lisa foi demitida e ela mesma optou por sair no final de novembro.
"Não há ninguém lá para trabalhar com os recursos de segurança", diz ela. Young não tem ideia do que aconteceu com os projetos que estava cuidando.
Durante esta investigação da BBC, muitas pessoas enviaram mensagens contando como o ódio que recebem no Twitter aumentou desde que Musk assumiu - compartilhando exemplos de racismo, anti-semitismo e misoginia.
Ellie Wilson, que mora em Glasgow, foi estuprada enquanto estava na universidade e começou a postar sobre essa experiência nas redes sociais no verão passado. Na época, ela recebeu muito apoio no Twitter.
Mas quando ela postou sobre seu agressor em janeiro, depois que ele foi condenado, ela foi alvo de uma onda de mensagens de ódio. Ela recebeu respostas abusivas e misóginas - com alguns até dizendo que ela merecia ser estuprada.
"[O que] acho mais difícil [são] as pessoas que dizem que não fui estuprada ou que isso não aconteceu e que estou mentindo. É como sofrer o trauma de novo”, diz Wilson.
O número de seguidores dela no Twitter era menor antes da aquisição, mas quando as contas que a atacavam foram examinadas, a BBC notou que os perfis se tornaram mais ativos desde a aquisição, sugerindo que eles haviam sido suspensos anteriormente e reintegrados recentemente.
Algumas das contas foram abertas na época da troca de donos. Elas pareciam dedicadas a espalhar discurso de ódio, sem fotos de perfil ou características de identificação. Vários seguem e interagem com o conteúdo de contas populares que foram acusadas de promover misoginia e ódio – reintegradas no Twitter depois que Musk decidiu restaurar milhares de contas suspensas, incluindo a do controverso influenciador americano Andrew Tate.
Vários dos relatos também tiveram como alvo outras sobreviventes de estupro com quem ela está em contato.
Andrew Tate não respondeu ao pedido de comentário da BBC.
Uma nova pesquisa do Institute for Strategic Dialogue - centro de pesquisa do Reino Unido que investiga desinformação e ódio - mostra que dezenas de milhares de novas contas foram criadas desde que Musk assumiu e que elas imediatamente seguiram perfis abusivos e misóginos conhecidos - 69% a mais do que antes de ele assumir o cargo.
A pesquisa sugere que essas redes estão crescendo agora - e que a aquisição de Musk criou um "ambiente permissivo" para a criação e uso desse tipo de conta.
As principais prioridades de Musk desde a aquisição - de acordo com suas próprias postagens - são tornar a empresa de mídia social lucrativa e “defender a liberdade de expressão”.
Em dezembro de 2022, ele divulgou documentos internos chamados de "Arquivos do Twitter" para explicar por que acreditava que a empresa não estava aplicando de maneira justa suas políticas de moderação sob a antiga liderança.
Mas funcionários e ex-funcionários acham que usou essa ideia para dar menos atenção para a proteção dos usuários. Mesmo o conteúdo perigoso contra o qual ele mesmo faz campanha contra, incluindo abuso sexual infantil e redes de robôs deliberadamente projetados para espalhar informações falsas, não está sendo combatido como antes, dizem os funcionários.
Ray Serrato trabalhou em uma equipe especializada em lidar com operações de desinformação ou ataques a jornalistas promovidas por governos. Ele saiu em novembro porque sentiu que não havia uma visão clara para proteger os usuários sob a nova liderança. Ele diz que sua equipe identificava atividades suspeitas como essa "diariamente". Agora sua equipe foi "dizimada" e existe em uma "capacidade minimizada" de lidar com o problema.
"O Twitter pode ter sido o refúgio onde os jornalistas faziam suas vozes serem ouvidas e criticavam o governo. Mas não tenho certeza se continuará sendo assim”, diz ele.
"Existem vários especialistas importantes que não estão mais na equipe e que cobriam regiões especiais, da Rússia à China", afirma.
Outro ex-funcionário, que estamos chamando de Rory, também está muito preocupado com essa perda de conhecimento - e como isso parece estar minando prioridade de Musk de impedir que pedófilos usem o Twitter para buscar vítimas e compartilhar links com registros de abuso sexual. Rory trabalhou até muito recentemente como parte de uma equipe de combate à exploração sexual infantil .
Sua equipe identificava contas que compartilhassem conteúdo abusivo sobre crianças, encaminhando o pior para as autoridades. Antes da aquisição, esse conteúdo já era um grande problema, diz ele - e ele já temia que a empresa estivesse com falta de pessoal.
Mas sua equipe foi reduzida logo após a aquisição, diz ele, de 20 pessoas para cerca de seis ou sete. Em sua opinião, isso é muito pouco para manter a carga de trabalho.
Rory diz que, antes de ele sair, nem Musk nem qualquer outro membro da nova gestão fizeram contato com ele e sua antiga equipe, que juntos tinham anos de experiência nesta área.
"Você não pode assumir uma empresa e de repente acreditar que tem conhecimento… para lidar com [exploração sexual infantil] sem ter os especialistas", diz ele.
O Twitter diz que removeu 400 mil contas em apenas um mês para ajudar a "tornar o Twitter mais seguro". Mas Rory está preocupado que agora haja menos pessoas com conhecimento para levar efetivamente as preocupações sobre esse conteúdo às autoridades.
"Você pode suspender centenas de milhares de contas em um mês. Mas se a denúncia desse conteúdo à polícia caiu, isso realmente não significa nada, e a maioria dos usuários que tiveram suas contas suspensas apenas criará uma nova conta de qualquer maneira."
A BBC tentou questionar Elon Musk sobre a aquisição, sua visão para o Twitter e que ele acha que está acontecendo na empresa. A BBC tentou contatá-lo por e-mail, tuítes e até uma "enquete" no Twitter. Mais de 40 mil usuários votaram e 89% disseram que Musk deveria dar uma entrevista. Mas ele não respondeu.
O Twitter também não respondeu oficialmente à BBC. Toda a equipe de comunicação do Twitter pediu demissão ou foi demitida. As políticas do Twitter, publicamente disponíveis online, dizem que "defender e respeitar a voz do usuário" continua sendo um de seus "valores centrais".
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