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Arte e Famosos

Álbum definidor de Maria Bethânia, 'Rosa dos ventos' faz 50 anos com a mesma força dramática


Disco registra, de forma fragmentada, show de 1971 que se tornou matriz do estilo dramático da intérprete. Capa do álbum 'Rosa dos ventos – Show encantado'

Norma Pereira Rego com arte de Aldo Luiz

? MEMÓRIA – Existem álbuns que marcam definitivamente a presença de um artista ou banda no universo da música.

No caso de Maria Bethânia, cantora baiana projetada nacionalmente a partir de fevereiro de 1965, ao substituir Nara Leão (1942 – 1989) no teatralizado show Opinião (1964 / 1965), este álbum definidor é Rosa dos Ventos – Show encantado, lançado em 1971.

Não por acaso trata-se de álbum ao vivo, flash instantâneo de Bethânia no palco, habitat natural desta intérprete de tons dramáticos, vocacionada para a cena.

Sucesso da temporada carioca de 1971, tendo ficado meses em cartaz no Teatro da Praia (RJ) antes de seguir para a temporada paulistana no Teatro Maria Della Costa (SP) e para temporada baiana no Teatro Castro Alves (BA), o espetáculo Rosa dos ventos é a matriz impressa desde então nos shows posteriores da artista.

Ecos deste show reverberaram ao longo da trajetória da cantora nos palcos, sedimentando o acerto da conexão de Bethânia com o diretor e ator de teatro Fauzi Arap (1938 – 2013), condutor da intérprete em cena ao criar roteiros que entrelaçavam músicas e textos, geralmente poesias.

Rosa dos ventos foi o aprimoramento da parceria de Fauzi com Bethânia, iniciada quatro anos antes com o show Comigo me desavim (1967), no qual Bethânia disse, pela primeira vez, texto da escritora Clarice Lispector (1920 – 1977), à cuja obra a cantora retornou em Rosa dos ventos, com direito a texto inédito de Clarice, escrito para o espetáculo.

O show encantado de 1971 também reforçou os laços de Bethânia com o poeta português Fernando Pessoa (1888 – 1935), já presente no mencionado show Comigo me desavim através da música-título, parceria póstuma de Caetano Veloso com Pessoa nunca registrada em disco por Bethânia.

Pelas precárias condições técnicas em que o show foi gravado, por iniciativa de Roberto Menescal, então diretor artístico da gravadora Philips, espanta que o disco apresente som quente, sobretudo na edição em CD lançada em 2006 com remasterização de Luigi Hoffer.

O álbum Rosa dos ventos – Show encantado chega aos 50 anos em 2021 com a mesma força dramática de 1971, mesmo que o roteiro tenha sido fragmentado na transposição para o disco, com as músicas fora da ordem original – o que desgostou profundamente Bethânia.

Infelizmente, por questão de espaço no LP, cuja (já raríssima) edição original tinha capa dupla, o álbum perpetua somente um registro parcial do show com o agravante de que, como o roteiro ficou fora da ordem na disposição das músicas nos dois lados do LP (sem a numeração das faixas, divididas em 13 somente na edição em CD), o conceito do roteiro se perdeu.

Exemplo da habilidade de Fauzi Arap na costura de músicas e textos, esse roteiro associava as músicas a cada um dos quatro elementos da natureza – água, ar, fogo e terra – e, com o reforço dos textos, criou show com forte carga espiritual e psicológica, com ecos do trabalho da psiquiatra Nise da Silveira (1905 – 1999) sobre o inconsciente.

É quando Bethânia “abre as portas que dão para dentro” para se perder no labirinto sombrio por onde se move Janelas abertas nº 2 (1971), música do mano Caetano Veloso, compositor também presente no disco com as lembranças das canções Avarandado (1967) e Não identificado (1971).

O caráter psicológico do roteiro do show Rosa dos ventos também está exemplificado no disco quando a cantora faz desabrocha a densidade de Flor da noite (Toquinho e Vinicius de Moraes, 1971), música sobre “louca mansa” do Pelourinho, em Salvador (BA).

Com a voz de Bethânia à frente, o som do disco nem sempre capta toda a maestria dos toques dos músicos do Terra Trio, responsáveis pela musicalidade do álbum. Agrupados desde 1966, o pianista Zé Maria, o baixista Fernando Costa e o baterista Ricardo Costa começaram a tocar com Bethânia já em 1967 e acompanhariam a cantora ao longo de toda a década de 1970.

Em Rosa dos Ventos, o Terra Trio embasou as incursões de Bethânia por repertório antenado com as novidades da MPB. Parceira do poeta Tite de Lemos (1942 – 1989) em Assombrações (1971), música que abre o álbum, Sueli Costa já tinha sido lançada em disco por Nara Leão em 1967, mas somente ganhou impulso como compositora a partir do show Rosa dos ventos, cujo roteiro original incluía outras duas músicas de Sueli com Tite, Aldebarã e Sombra amiga, ausentes do registro fonográfico.

Cabe ressaltar também que a música-título Rosa dos ventos (1970) era composição que passara quase despercebida no álbum lançado por Chico Buarque no ano anterior e até mesmo na gravação feita em estúdio pela cantora para o álbum A tua presença, lançado naquele mesmo ano de 1971. Foi Bethânia quem expôs, no show, toda a dimensão dramática da canção de Chico, desde então associada primordialmente à intérprete.

Mesmo fragmentado e sem o elo conceitual do show, o repertório do disco Rosa dos ventos aponta e reitera caminhos seguidos por Bethânia em trajetória pavimentada com extrema coerência.

Estão lá os sambas de roda do Recôncavo baiano, os mergulhos no cancioneiro de Dorival Caymmi (1914 – 2008), as saudações aos orixás – representadas pelo canto do então recente Ponto de Oxum (Toquinho e Vinicius de Moraes, 1971) – e a devoção ao sambista baiano Oscar da Penha ( 1924 – 1997), o Batatinha, apresentado por Bethânia antes de medley em que encadeou Hora da razão (Batatinha e J. Luna, 1971), Imitação (Batatinha, 1971) e Toalha da saudade (Batatinha e J. Luna, 1971).

O entrelaçamento de Lembranças (Raul Sampaio e Benil Santos, 1961) com a recente Minha história (Gesù bambino, Lucio Dalla e Paola Pallottino, 1970, em versão em português de Chico Buarque, 1971) é exemplo da capacidade de Bethânia de ressignificar canções com outro olhar, outro enfoque ou outra costura.

Muito se perdeu do show para o disco, mas, ao menos, ambos se encerram da mesma forma. Após saudar o encontro interior abordado em texto inédito de Clarice Lispector, Bethânia segue Movimento dos barcos (Jards Macalé e José Carlos Capinan, 1971).

Não, Maria Bethânia nunca ficou no porto lamentando temporais e o curso inexorável da vida. As coisas foram passando e a cantora passou com elas, sempre fiel a si mesma. E, justamente por tamanha fidelidade, há coisas que nunca passam, como este já cinquentenário álbum ao vivo Rosa dos ventos – Show encantado, disco definidor da carreira de Maria Bethânia.

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