“Trata-se de uma plataforma pública, gratuita e com diretrizes para os usuários similares a outras redes, como Facebook e Instagram”, pontua o advogado, acrescentando que sua cliente foi demitida — depois de três anos de processo — por ter “adotado conduta ofensiva à honra pessoal e ao decoro da classe”, conforme, segundo ele, justifica a PM ao recorrer ao código de ética da lei estadual 14.310/2002 nos autos do processo. No entanto, os vídeos que ela gravou não têm conotação sexual, diz Cantelmo. “Ela nunca dançou de roupa íntima, por exemplo, ou fez menção à PM. Acontece que, ao longo de quase 10 anos, ela sofreu diversos tipos de assédio, como sexual, moral e psicológico. Policiais tentaram sair com ela, forçando um relacionamento, até que os vídeos foram descobertos pouco depois dela iniciar as publicações. Alguém entrou nessa plataforma e a reconheceu como policial militar. Desconfiamos que seja algum agente infiltrado da corregedoria da PM”, afirma Cantelmo, que é especialista em direito militar.
Demissão na frente de militares e perda do bebê
Cantelmo diz ainda que o desligamento de Shirley aconteceu na frente de outros militares abaixo dela na hierarquia da polícia, como cabo e soldado. “Na ocasião, ela estava grávida de oito semanas e foi chamada na frente deles, sendo escoltada até em casa para pegar a farda”, declara. “Foi uma situação vexatória e humilhante. Com o estresse, ela passou mal e perdeu a criança, que ainda está no útero dela, sendo necessária a curetagem [retirada de material placentário ou endometrial da cavidade uterina] para posterior retirada do feto. Porém, ela não tem mais o plano de saúde da corporação e ainda está desempregada”, conta o advogado. Agora, após finalizado o Processo Administrativo Disciplinar (PAD) da Polícia Militar, que resultou na demissão, a defesa tenta reverter a decisão por meio de recurso impetrado junto ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). O processo judicial, de acordo com estimativa do advogado, pode durar até dois anos. Denúncias de assédio na corporação
Em entrevista ao Estado de Minas, Shirley Manacês, mãe de um menino de oito meses, afirma que os episódios de assédio sexual sempre foram frequentes dentro da corporação — uma situação que ela diz nunca ter denunciado por medo de represálias. Um dos primeiros casos, segundo Shirley, aconteceu em 2014, em Belo Horizonte, durante o curso na Escola de Formação de Soldados, logo após ela ser admitida em janeiro daquele ano. “Hoje, sou casada, mas, na época, eu era noiva. Fui à sala da coordenação para tratar de um assunto, e o oficial falou que meu noivo deveria ter muito ciúmes de mim porque eu era muito linda de farda e mais linda ainda à paisana”, denuncia. “Depois, ele viu que a parte vermelha da minha blusa, que representava a companhia do curso, estava para fora e tocou no meu braço, colocando essa parte para dentro. Eu ri sem graça e não falei nada. Apenas me retirei. Foi algo bem rápido. Mas aí, vendo que eu não me rendi, ele começou uma marcação no curso comigo”, afirma. Depois de se formar, Shirley conta que foi encaminhada para um pelotão em uma pequena cidade perto de Belo Horizonte. Ela não quis revelar à reportagem o local exato, pois alega temer pela sua segurança e de sua família. “Certo dia, alguns militares estavam reunidos, sendo eu a única mulher no grupo. Eles começaram a falar sobre a marcação de um encontro do pelotão e me chamaram para participar. Eu disse que não ia, pois a outra militar do pelotão não iria. Não fazia sentido ir sozinha em um encontro onde só teria homens. Daí, um sargento disse: ‘Você vai, e vai de biquíni pra gente ficar te admirando’”, diz ela. Shirley diz que imediatamente chamou o sargento responsável pelo destacamento do pelotão. “Ele pediu para eu não tomar providências, pois iria conversar com ele e que isso não iria mais se repetir. Fiquei constrangida e sem lugar. Antes disso, eu já tinha tomado conhecimento que esse mesmo sargento já tinha tirado foto minha de costas”, afirma Shirley. Em 2018, em BH, segundo ela, a então agente da PM estava encarregada de um processo envolvendo um cabo, quando um oficial da corporação, que ela precisava ouvir, a fez ficar “o dia todo” no batalhão aguardando-o. “Após isso, ele fez contato via WhatsApp comigo e, por pelo menos uns três dias, sob alegação de que estava para ir embora para outra cidade, insistiu muito para sair comigo. Durante todo esse tempo na polícia, sempre conseguiam o meu telefone por meios que desconheço”, finaliza. Irregularidades no Processo Administrativo Disciplinar (PAD)
Antes da demissão, em 20 de julho, um médico da Polícia Militar emitiu um relatório no qual Shirley é diagnosticada com depressão. No documento, que a reportagem teve acesso, o profissional recomenda o afastamento da policial por um período mínimo de 60 dias e seu acompanhamento psicológico. “A continuação da tramitação do PAD desrespeitou ordens médicas. O processo deveria ter sido suspenso até que ela estivesse em plenas condições de respondê-lo”, avalia o advogado. “A segunda irregularidade é a ausência de critério na tomada de decisão por parte do conselho de ética, da comissão processante e da própria coronel corregedora. Outros militares submetidos a processos [semelhantes] não foram tratados da mesma forma e sequer foram demitidos da corporação”, afirma Cantelmo. Por fim, o advogado de Shirley diz que “determinados requerimentos da defesa” não foram colocados nos autos do processo. “Não trouxeram a cadeia de custódia das provas digitais e as origens efetivas dos vídeos, além de não demonstrarem se ela ganhou ou não dinheiro com qualquer tipo de exposição em rede social. Não fizeram porque isso não existiu. Foi uma falácia processual para persegui-la e demiti-la”, diz ele. O que diz a Polícia Militar
Procurada pela reportagem para comentar a demissão da profissional, a Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) esclarece, por meio de nota, que Shirley Manacês foi “submetida a Procedimento Administrativo Demissionário (PAD), tendo sido garantido o direito ao contraditório e ampla defesa, com integral acompanhamento do seu defensor”. “Após o trâmite do devido processo legal foi decidido por sua demissão da Polícia Militar”, finaliza a instituição, que manteve a mesma nota ao ser questionada em um segundo contato da reportagem sobre as denúncias de assédio sexual.