Embora tivesse como mote principal o julgamento na Suprema Corte, o protesto dos indígenas também se atentava para as discussões sobre seus direitos no Legislativo. Rapidamente o tempo deu razão às preocupações dos xakriabás. Depois que o STF determinou, por 9 a 2, que o marco temporal é inconstitucional, a decisão serviu para alimentar uma rusga entre a instância máxima do Judiciário e o Congresso Nacional. Os parlamentares criticam decisões como a dos direitos dos indígenas e a pautas como a descriminalização do aborto e das drogas, acusando os magistrados de estarem legislando, tarefa conferida a deputados e senadores.
Uma semana depois da decisão do STF, o Senado Federal votou e aprovou em um intervalo de apenas cinco horas um projeto de lei que reestabelece o marco temporal, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e no plenário, em clara reação aos ministros da Suprema Corte. O texto foi encaminhado para sanção ou veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Os xakriabás ouvidos pela reportagem durante o protesto manifestaram seu repúdio à medida, sempre recordando o ardor das lutas recentes que lhes conferiram direito legal ao terreno que já ocupavam antes da chegada de colonizadores europeus.
“A luta do nosso povo teve muito sangue e até hoje estamos brigando para ter nossa terra de volta para nossos netos, bisnetos, tataranetos. A terra é nossa mãe, é por ela que nós lutamos, estamos firmes com nosso Deus Tupã e vamos vencer. Muito sangue foi derramado, mataram meu tio”, recorda Santília Gomes. Com 58 anos de idade, todos eles vividos dentro da terra Xakriabá, ela faz referência a Rosalino Gomes, uma das três lideranças assassinadas em chacina ocorrida em 1987 a mando de um fazendeiro da região. Rosalino foi morto a tiros em frente aos filhos. Um deles, Domingos, é o atual cacique-geral da reserva; o outro, José Nunes, foi prefeito de São João das Missões por três mandatos.
Meses após a chacina, a Terra Indígena Xakriabá foi homologada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Como o fato se deu ainda em 1987, antes de a atual Constituição ser promulgada, a maior parte do território não sofreria riscos sob vigência da tese do marco temporal. Conquistas posteriores, no entanto, entrariam em xeque. É o caso da Terra Indígena Rancharia, demarcada em 2002.
“Essa lei seria para os brancos”
O cacique Agenor é líder da Aldeia Tenda, localizada na Terra Indígena Rancharia. Ele destaca a longa luta de seu povo pela obtenção do direito que está na mira dos parlamentares, e lembra que a comunidade ainda sofre com ameaças, por estar na divisa da área demarcada e, portanto, em contato próximo com fazendeiros.
“Foi uma luta muito complicada, recebemos muitas ameaças, mas conseguimos. Ainda existem ameaças, porque a gente vive encostado em uma área em que os fazendeiros ainda não foram indenizados. Quando surge uma ideia como essa (do marco temporal), que vem para exterminar e violentar nossos direitos, é triste”, lamenta.
“Temos uma grande preocupação, porque já vivemos em grande dificuldade e não podemos perder mais direitos. Além disso, a natureza precisa ser respeitada e o marco temporal acabaria com isso. Essa lei seria favorável aos brancos, aos fazendeiros que já ocupam nossas terras, que são nossas por direito. As terras são nossas, nós temos a cultura, sabemos tirar o alimento dela, cuidar dela, respeitando o ambiente”, destacou o cacique.
A luta pelo Rio São Francisco
“Aqui estão as crianças, nossos velhos, a juventude, os caciques e as lideranças contra o marco temporal. Entendemos que esse é o marco da morte, porque querem acabar com nossas terras, nossas casas, nossos rios, nossas florestas. Nós somos o povo da água, mas não temos acesso ao rio, que é nosso pai. Somos hoje um povo órfão de pai, temos a terra, que é nossa mãe, mas não temos um pai”, diz Wasady Xakriabá, de 25 anos, integrante da Articulação da Juventude Xakriabá.
Segundo ele, além de ameaçar conquistas, a tese do marco temporal impede o avanço de reivindicações históricas. “Já tem brancos na nossa terra que não foi demarcada na beira do rio. Se o marco for aprovado, não vamos ter acesso ao rio, porque ele dá livre acesso a fazendeiros para entrar na nossa terra. O que queremos é proteger o que a gente tem e chegar ao rio”, completa.
Wasady fala sobre um dos principais pleitos dos xakriabás: a retomada das margens do Rio São Francisco, originalmente ocupada pelos indígenas, que foram gradativamente expulsos durante o processo de colonização. Esse avanço em direção ao curso d’água se veria dificultado com a aprovação do marco temporal, mais um percalço para concretizar uma reivindicação que data, ao menos, do início do século 18.
Em 1728, a Coroa Portuguesa oficializou a “doação” de um terreno compreendido entre os rios Itacarambi, Peruaçu e São Francisco, delimitado pela Serra Geral e Boa Vista aos Xakriabá. A medida foi feita em compensação por apoio em um embate com os Kaiapó, considerados presença nociva à ocupação colonizadora no Velho Chico.
Mas a “cessão” pouco refletiu em direitos à ocupação do terreno na prática. Os xakriabás pressionaram o Estado até que a “doação” fosse registrada em um cartório de Ouro Preto, então capital mineira, em 1856. Novamente, pouco adiantou. A Terra Indígena Xakriabá, homologada em 1987, tem cerca de um terço do tamanho do terreno “cedido” e até hoje é reivindicado pelos indígenas com o objetivo da retomada do Rio São Francisco pelo povo que foi batizado como os “bons de remo”.
O direito à terra que divide
Congresso, STF e indígenas
Com todos os votos computados, o julgamento do marco temporal no Supremo Tribunal Federal (STF) foi finalizado na última quarta-feira (27/9) após 12 sessões. Embora os votos dos ministros já fossem conhecidos, as argumentações divergiam em relação a pontos específicos, como a possibilidade de indenizar proprietários das terras em localidades demandadas pelos indígenas.
Os magistrados entraram em um consenso para validar a indenização a particulares que adquiriram terras de “boa-fé”. Mas essa decisão é apontada por indigenistas e pesquisadores do tema como um dificultador que pode até inviabilizar novas demarcações de territórios indígenas, já que demandaria repasse de verbas expressivas pela União.
Já o texto do Projeto de Lei 2.903/2023, aprovado no Senado após a decisão do STF contra o marco temporal, conflita com o entendimento da Suprema Corte. Além de instituir a promulgação da Constituição Federal, em 1988, como data determinante para validar ou não a demarcação de terras indígenas, a proposta traz outros pontos polêmicos.
Um dos principais reside na possibilidade de revisar territórios já demarcados a partir da análise de elementos culturais da população. Segundo o projeto, a análise dos alimentos cultivados e de alterações dos traços culturais da comunidade poderia resultar na supressão de terras já demarcadas. Em nota, o Ministério dos Povos Indígenas criticou a postura.
“Não se pode querer definir por um padrão único cultural das sociedades. Os povos indígenas têm um modo de vida e isso deve ser compreendido e respeitado pelas estruturas legais. Não é verdade que hoje é proibido que os indígenas plantem ou produzam seus alimentos, o que não é permitido é o arrendamento, o abuso e a exploração dos indígenas dentro das suas próprias terras para servir aos interesses dos grandes proprietários. Este ministério tem o compromisso de apoiar e estabelecer políticas que criem condições para fortalecer a bioeconomia dos povos indígenas e defende o usufruto exclusivo conforme prevê a Constituição Federal”, diz trecho do texto publicado pela pasta.
Sob a proteção do Judiciário
Para o doutor em história Pablo Lima, professor da Faculdade de Educação UFMG, a decisão do STF protege os povos indígenas de eventuais retrocessos aprovados no Congresso Nacional. O pesquisador ressalta que, apesar do desafio imposto pela discussão do marco temporal, os xakriabás não devem arrefecer a luta pela retomada de terras.
“A tese do marco temporal já foi julgada inconstitucional pelo STF, pelo simples motivo de que a Constituição nada fala sobre marco temporal no caso de demarcação de terras indígenas. Mesmo que o Congresso aprove alguma lei neste sentido, o Supremo pode derrubá-la”, avalia o professor.
Ele destaca que nenhuma lei tem poder retroativo. “Essa tese do marco temporal surgiu no caso da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, como parte da defesa dos povos indígenas, pois já ocupavam o território quando da promulgação da Constituição. Posteriormente, de modo capcioso, contrariando a arqueologia e a história, que comprovam uma ocupação indígena de mais de 12 mil anos em todo o território brasileiro, a tese do marco temporal passou a ser usada contra os indígenas por parte de indivíduos e entidades orientadas por políticas de direita e extrema-direita, ameaçando a existência de territórios ocupados após 1988”, acrescenta Pablo Lima.
E ele prevê que esse será mais um obstáculo transposto pelos xakriabás. “Acredito que a luta deles pela retomada de territórios, incluindo as margens do Rio São Francisco e o próprio rio, vai continuar, pois esse é um povo organizado politicamente, instruído academicamente e preparado para enfrentar seus adversários e inimigos”.