Maioria dos editais tem menos de 3 vagas, que é o número mínimo necessário para a aplicação da lei de cotas, mostra o levantamento da Univasf, Insper e outras instituições. Lei de 2014 prevê a reserva de 20% das vagas nos concursos públicos federais para candidatos negros
UnB Agência
Universidades federais têm "fatiado" seus concursos para servidores, criando em editais com poucas vagas. E isso tem prejudicado o cumprimento da lei de cotas para negros, conclui uma pesquisa divulgada pelo Movimento Negro Unificado (MNU).
Desde 2014, a lei prevê que 20% das vagas nos concursos públicos federais devem ser reservadas para candidatos negros, desde que o total de oportunidades oferecidas seja igual ou superior a três.
O levantamento do MNU mostra que, nos últimos dez anos, mais de 70% dos concursos para servidores em instituições federais de ensino foram elaborados com menos de três vagas.
Segundo o relatório, essas seleções têm características que acabam resultando em formas de burlar a lei de cotas, de forma intencional ou não.
Entre elas os mecanismos está o de distribuir mais de 40 mil vagas em editais específicos, dividindo por especialidades, locais de atuação e departamentos, por exemplo, o que acabou resultando em uma maioria de concursos com menos de três vagas.
Essas estratégias impediram que aproximadamente 10 mil profissionais negros assumissem cargos no serviço público federal e deixassem de receber, juntos, R$ 3,5 bilhões nos últimos anos, informam os pesquisadores.
O estudo foi conduzido pela Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), o Insper e outras universidades e foi entregue na última segunda-feira (18) ao Tribunal de Contas da União (TCU). A ideia é ajudar o órgão a planejar trabalhos futuros relacionados ao tema.
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Quase 10 mil editais analisados
A pesquisa foi motivada por um relatório do Ministério da Mulher publicado em 2021.
Na época, o estudo realizado pela Escola Nacional de Administração Pública (Enap) apontou que, mesmo após a criação da lei de cotas, em 2014, o percentual de nomeados em vagas reservadas para negros, no cargo de Professor da Carreira do Magistério Superior, foi de apenas 0,53%, até 2019.
Agora, os pesquisadores analisaram 9.996 editais de processos de seleção, publicados no período de 10 de junho de 2014 a 31 de dezembro de 2022 por 56 instituições federais de ensino e cinco de segmentos diversos do serviço público federal, em todos os estados brasileiros.
E eles constataram que 74,6% dos concursos públicos e 76% dos processos seletivos simplificados realizados por instituições federais de ensino, especificamente, tinham menos de três vagas.
Em todos os editais analisados, 46.309 vagas foram abertas. Dessas, segundo a pesquisa, 9.129 tinham potencial de terem sido reservadas para pessoas negras, mas não foram. E isso não aconteceu por falta de qualificação dos candidatos, mas por burlas intencionais ou não do sistema, diz o relatório.
Além disso, a falta de cotas fez com que a comunidade negra deixasse de receber R$ 3.570.289.280,40 nos últimos anos, de acordo com a apuração dos pesquisadores com base na quantidade de vagas que deveriam ter sido reservadas e os salários associados a elas.
Os 6 mecanismos que prejudicaram a lei de cotas, segundo a pesquisa:
Instituições deixaram de mencionar em seus editais a obrigatoriedade da implementação da lei de cotas.
Cargos públicos foram fracionados em categorias menores, sejam elas áreas de conhecimentos, subáreas, temas de atuação e/ou especialidades, por exemplo.
Um determinado número de vagas de um cargo foi dividido em diferentes editais, publicados em sequência, no mesmo mês.
Vagas foram distribuídas em diferentes locais de atuação do futuro servidor (por exemplo, cidade ou campus), como se fossem espaços autônomos em relação à administração central.
Vários editais foram abertos por unidades administrativas menores dentro de uma mesma instituição.
Instituições realizaram sorteios ou aplicaram outros critérios arbitrários para selecionar quais especialidades daquele concurso seriam contempladas pela lei de cotas.
Nenhuma das estratégias acima foi considerada legítima pelos pesquisadores, que alegaram que, por causa delas, a população negra não tem alcançado seus direitos diante de uma reparação histórica tardia.
O relatório também ressaltou que, durante o julgamento de uma ação em 2017, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso já havia dito que "os concursos não podem fracionar as vagas de acordo com a especialização exigida para burlar a política de ação afirmativa".
Ao entregarem o relatório ao TCU, os pesquisadores sugeriram medidas como a elaboração de uma portaria para orientar as instituições de ensino a fazerem um planejamento anual para abertura de concursos e emitirem relatórios sobre a presença de pessoas negras nos processos seletivos.
O que diz o governo
Procurado pelo g1, o Ministério da Educação afirmou que "atua em constante diálogo com as 69 universidades federais existentes no país" e ressaltou que elas têm autonomia garantida pela Constituição.
O MEC disse ainda que entende que os editais de concursos elaborados por elas podem ser aprimorados, "a fim de evitar distorções" quanto ao atendimento dos objetivos da lei "como as apresentadas em pesquisas recentes, inclusive do próprio MGI (Ministério da Gestão e Inovação)".
"Embora as universidades federais já observem a legislação vigente em seus certames, a pasta espera que a adoção das medidas já sinalizadas pelo governo federal sejam suficientes para sanar as distorções identificadas com base em dados de pesquisas recentes", disse o ministério.
O Ministério da Gestão e Inovação (MGI), que propõe políticas, diretrizes e normas para concursos públicos, não respondeu ao pedido de comentário até a última atualização desta reportagem.
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