O índice está acima da média registrada em estudantes de outros 79 países analisados pela organização, que é de 53%. Antes da pandemia, as horas de conexão à internet de adolescentes do Brasil ocorriam em sua maioria fora do ambiente escolar. Especialista alerta que, sem intermediação para saber filtrar o conteúdo, os adolescentes podem ficar expostos.
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67% dos estudantes de 15 anos do Brasil – quase sete a cada dez – não conseguem diferenciar fatos de opiniões quando fazem leitura de textos, de acordo com um relatório divulgado nesta semana pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
O índice está acima da média registrada em estudantes de outros 79 países analisados pela organização, que é de 53%.
No documento "Leitores do século 21: Desenvolvendo habilidades de alfabetização em um mundo digital", a OCDE afirma que as tecnologias digitais são responsáveis por uma maior disseminação da informação, com variedade de formatos que nem sempre se encaixam em modelos tradicionais.
Isso faz com que seja necessário ensinar aos alunos a distinção entre os textos e a qualidade dos e-mails recebidos. Por exemplo, se são golpes criminosos para roubar dados (phishing) ou até propagandas indesejadas (spams).
"As tecnologias digitais possibilitaram a disseminação de todos os tipos de informação, substituindo formatos tradicionais, como jornais, que geralmente fazem uma seleção mais criteriosa do conteúdo", aponta um trecho do relatório.
"O enorme fluxo de informações que caracteriza a era digital exige que os leitores sejam capazes de distinguir entre fato e opinião. Os leitores devem aprender estratégias para detectar informações tendenciosas e conteúdo malicioso, como notícias falsas e e-mails de phishing. A "infodemia" na qual eventos como a pandemia de Covid-19 nos envolveram torna mais difícil discernir a precisão das informações quando o tempo de reação é crucial. Isso ilustra como é essencial ser um leitor proficiente em um mundo digital", afirma Miyako Ikeda, analista sênior de Educação e Competências da OCDE.
O risco, diz o documento, é de que a desinformação leve à "polarização política, diminuição da confiança nas instituições públicas e falta de credibilidade na democracia".
"A oportunidade de os alunos aprenderem na escola como detectar se as informações são subjetivas ou tendenciosas está fortemente associada ao percentual estimado de acertos no item que se concentra em distinguir fatos de opiniões na avaliação de leitura do Pisa [Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, feito a cada três anos]. Em média, nos países da OCDE, 55% dos alunos relataram ter sido treinados na escola sobre como reconhecer se as informações são tendenciosas, enquanto 46% dos alunos relataram isso no Brasil", afirma Ikeda.
Pensamento crítico
Para Jane Reolo, coordenadora de Soluções com Tecnologia do Instituto Unibanco, os alunos do Brasil têm maior dificuldade em diferenciar fatos de opiniões porque não são orientados a desenvolver o pensamento crítico na escola.
Segundo ela, historicamente os alunos são treinados a buscar respostas certas e erradas dentro de um texto, mas não de analisar os argumentos.
"Diferenciar fato e opinião demanda análise comparativa. É olhar para algo e, a partir de evidências e comparações, conseguir diferenciar. A pesquisa diz que nossos meninos e meninas não sabem fazer isso. Mas, historicamente, nossa escola prepara os alunos para achar a resposta certa. Em um universo com várias informações como é a internet, a escola em geral ainda não oferece isso", avalia.
Para minimizar os riscos, é preciso treinar as habilidades destes jovens com práticas que estimulem a argumentação e a troca de ideias.
"Discernir fato de opinião é aumentar a capacidade analítica. O aluno precisa estar exposto a mais informações, fazer grupos em que um defende uma opinião e outro defende outra, com argumentação e contra argumentação, e chegar a consensos. Esse exercício a escola não faz. Porque leva muito tempo. Talvez nossa estrutura de 45 minutos de aula não permita", analisa Reolo.
Alfabetização digital
A falta de uma educação voltada às ferramentas digitais no país levanta ainda mais preocupação, quando analisada ao lado de outros dados que o relatório da OCDE traz:
Houve aumento no acesso a ferramentas digitais em casa. No Brasil, em 2003 havia conexão em 20% dos lares destes alunos. O índice subiu para 60% em 2018.
Mas há diferença entre alunos de escolas em regiões mais e menos favorecidas. Em 2018, pouco menos de 30% dos alunos de escolas menos favorecidas tinham acesso a computador e internet em casa. Nas escolas mais favorecidas, o índice era de quase 90%.
Com computador e internet em casa, aumentou o tempo de conexão. O relatório aponta que, mesmo antes da pandemia, os alunos de 15 anos do Brasil passavam 36 horas por semana on-line (próximo à média da OCDE, de 35 horas), mas na maior parte do tempo a conexão ocorria fora do ambiente escolar. Em 2018, eram 31 horas on-line fora das escolas e 5h dentro. Na média da OCDE, eram 27 horas fora das escolas e 8 horas nas escolas. O relatório não traz dados atuais sobre o período de suspensão de aulas presenciais.
"Estar on-line não resulta automaticamente em alfabetização digital. É importante estudar mais a fundo como os alunos estão usando a Internet e que tipo de suporte ou treinamento eles receberam. Isso ajudará a informar as políticas e práticas que melhoram a alfabetização digital dos alunos. No Brasil, especialmente, isso seria importante, pois 31 das 36 horas online são fora das escolas, provavelmente sem qualquer supervisão ou orientação. Devido à atual pandemia, as horas on-line fora das escolas podem ter aumentado, embora não tenhamos dados comparáveis no momento", afirma Miyako Ikeda, da OCDE.
Reolo faz análise semelhante. "Estar on-line não é critério de qualidade. Eles estão na internet, mas fazendo o que? Com qual mediação? Crianças e jovens, indivíduos que estão em construção, não tem habilidades e competências para filtrar o que veem. Eles estão expostos", avalia.
Em relação à abordagem do uso da internet nas escolas, as instituições brasileiras afirmaram à OCDE que o conteúdo é transversal em todas as disciplinas e que não há no currículo uma formação específica sobre o tema.
Pesquisa aponta crescimento no total de horas em que adolescentes passam conectados à internet, mesmo antes da pandemia.
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Entre os países da OCDE, em média, 40% dos currículos escolares incluem a alfabetização digital. Se destacam a Estônia, com 70% do currículo, seguido por Coreia do Sul e Cazaquistão, com pouco mais de 60%.
"A escola não precisa ter uma aula de informática que ensine a mexer no [programa] Word, por exemplo, porque os programas mudam muito. Mas pode oferecer ao aluno a possibilidade de fazer uma apresentação, por exemplo, escrevendo o tema no quadro-negro da sala, ou em um cartaz, ou em Power Point, diferenciando o alcance que aquela informação vai chegar: no quadro negro, só quem estiver na sala vai ver. O cartaz pode ser colocado no corredor, ou na venda da esquina. O Power Point pode ficar on-line e chegar a todo mundo. O uso da ferramenta pode ser incorporado às práticas", avalia Reolo.
O desafio esbarra na formação dos professores, muitos sem habilidades digitais, o que foi escancarado na pandemia.
Reolo relata experiências ocorridas em São Paulo e no Ceará, antes da pandemia, em que foram incorporados professores com habilidade em tecnologia ao quadro de profissionais da escola. Eles auxiliavam outros professores a usar as ferramentas na sala de aula, oferecendo possibilidades de abordagem. Na pandemia, foram o elo para a transição do ensino presencial para o remoto.
"O risco de deixar o conteúdo transversal e não colocar na grade curricular é que, sem auxílio, esse professor pode alegar falta de tempo para abordar o tema", diz.
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