Artista internacional deixou sua marca em mural de 96 metros quadrados como um presente para a cidade, que completa 171 anos O Mural do Moinho compõe a série de obras – “Multidões” - que o artista retrata em cidades pelo Brasil e pelo mundo
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Nos passos do artista, a subversão pelo olhar. Na mente do artista, a justaposição de rostos e realidades. Pelas mãos do artista, uma Juiz de Fora ainda inédita. É assim, com mais de sete dezenas de latas de spray de cores vívidas que o renomado artista urbano, Guilherme Kramer, trouxe para o Moinho - empreendimento que está revitalizando as antigas instalações do Moinho Vera Cruz, na Zona Norte – as humanidades juiz-foranas ao concreto, em uma clara referência ao propósito do Moinho de “inspirar para transformar”.
Reconhecido internacionalmente, esta foi a primeira vez que Kramer emprestou sua arte urbana para traduzir em um mural de 24 metros de largura por 4 metros de altura sua impressão sobre as “juiz de foras” que encontrou pelas ruas.
Entusiasmado, com uma vibração contagiante pela oportunidade inédita de deixar sua marca e seu marco por essas paragens, ao entregar o obra, o artista concluiu que “agora ele já não é um trabalho só meu, é um presente para a cidade. É muito interessante como a arte urbana tem o poder de entrar na vida das pessoas que, por sua vez, recriam a narrativa da obra. Isso é fascinante”.
Segundo ele, as cores vívidas usadas na série “Multidões” que ele trouxe para Juiz de Fora falam muito sobre as cores da alma que cada um emana. "Então, na obra, há justaposição e passagens de inúmeras cores dentro desses rostos”, afirma Kramer, ao destacar que sempre foi louco pelas expressões humanas que ele também classifica como “cartografias faciais”.
Sentir a cidade não é uma excentricidade na obra do artista. Pelo contrário. É matéria-prima, tarefa que aguça os sentidos e se transforma em insumo indispensável para um trabalho que é essencialmente visceral.
“A memória borra a realidade. Não sou um cara que pega o tripé, um cavalete e pinto as coisas como elas de fato são. Esse processo de borro da memória é muito importante pra mim. Vou pegando os arquétipos, as coisas que estão flutuando pela cidade dentro desses acúmulos, dessa grande colcha de retalhos que são as cidades brasileiras com a espontaneidade dos seus urbanismos. Cada casa é de um jeito. Cada janela é de um jeito, o portão de outro. Vai ficando um grande caldeirão de referências. E o brasileiro é um pouco isso na sua forma de se expressar”.
Do mundo para a Zona Norte
Nascido em São Paulo, Guilherme Kramer traz desde a infância o desenho como principal forma de expressão, e hoje dedica-se às técnicas de pintura, cerâmica, mosaico, vitral e performance. Já realizou exposições individuais e coletivas em diferentes cidades do Brasil e do mundo, como Barcelona, Lisboa, Roma, Bogotá, Berna, Açores, Paris, Xangai e Hong Kong. Em Minas Gerais, Juiz de Fora será sua segunda experiência. A primeira foi na capital.
“Estive em Belo Horizonte, em 2016, em um projeto interessante para um editorial da Revista Ernesto. Era um prédio desocupado no Centro e fizemos a intervenção artística de um andar inteiro. Eu adorei estar em Minas, pintar em Minas, vivenciar a cidade. Foi maravilhoso. Fiquei impressionando com a generosidade do mineiro”, explica. Em suas mais recentes incursões, Kramer conta com muita paixão da experiência vivida em setembro do ano em que a História não conseguirá esquecer.
“Tive uma experiência muito profunda na penitenciária feminina de Pedrinhas. Estar em São Luiz do Maranhão, pintando em plena pandemia, evidenciou o exercício terapêutico que a arte promove. Durante o trabalho, uma das internas disse: "você me pinta?" Lógico, respondi. Tenho muito cuidado e respeito com todas as pessoas. Procurei a coordenadora e falei: vamos fazer um exercício de retratos aqui. Daí começou e foi uma festa”, explica.
“Todas queriam ser pintadas e comentavam sobre a imagem. Elas, no entanto, não se viam no retrato, mas as amigas diziam: "é você". Fiquei intrigado, até que a coordenadora explicou: Guilherme, aqui não tem espelho. Muitas mulheres não se veem há dez, 15 anos. Quase caí para trás ao perceber o sentindo tão maior. Pensei em um retrato como espelho e isso foi muito impactante”.
O respirar profundo na pandemia
O deslumbramento com as possibilidades do humano é a marca registrada na obra de Kramer, que é formado em Comunicação Social e estudou Artes Aplicadas ao Muro, na Escola Massana de Barcelona. No Museu Lasar Segall, em São Paulo, aperfeiçoou técnicas de litografia, xilogravura e metal.
"Meu trabalho tem como fio condutor o caminhar como prática artística. Caminho pelas ruas para transformar lugares e seus significados, pois acredito que perder-se é confrontar-se com outras realidades, adquirindo outros estados de consciência. Isso transforma paisagens. E eu permito que o espaço me domine, para que então eu crie novos pontos de referência. Ao desbravar a cidade e suas margens, no grande labirinto de suas periferias, encontro personagens que vivem normas e vidas próprias, que mudam constantemente a cada esquina”, revela o artista em seu manifesto.
“Neste processo, o subconsciente é o protagonista. Busco meu estado contraditório: real e irreal, caótico e ordenado, mundo interior e exterior, a loucura e a cura. A partir dessa investigação e reflexão durante o percurso pelo desconhecido, surge uma rede de nervos, veias, galhos, raízes, asas, texturas, pelagens, olhos, bocas, expressões e sons que compões meus desenhos."
Em tempos de pandemia, esse fazer artístico deixa eclodir o caráter revolucionário da arte em si. “Nossa vida ficou um pouco mais árida. Pintar na rua e fazer intervenção artística é incrível, porque como está tudo muito duro, muito acrílico - só a máscara já é um empecilho à expressão -, a arte se mostra viva. É um acontecimento que muda o dia a dia e cria novas referências”, observa Guilherme.
“A gente deixou de se encontrar, a espontaneidade foi perdida. Tudo está muito encaixotado, cada um no seu quadrado dentro do Zoom. Trazer para a rua o encontro, o coletivo, o rosto também é estar conectado. Meu trabalho tem essa questão cartográfica. Olhados de cima, os rostos podem ser ruas, avenidas, bairros, países. Então é isso o que fizemos em Juiz de Fora. Construir com pessoas essa rede de relacionamentos”, finaliza o artista que levou oito dias de intensas atividades para concluir o mural do Moinho.
Veja as Obras de Guilherme Kramer