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Luiz Fernando Braga: 'cancelamento é uma queima de conhecimento moralizante'

Por Redação

06/06/2021 às 10:35:14 - Atualizado há
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Uma publicação compartilhada por Luiz Fernando Braga (@luizfernandobraga)


O barema para poder medir vai se modificando de tempos em tempos. Hoje, temos uns caras apedrejados nas redes sociais, mas daqui a dez anos serão reabilitados. É um movimento fluido, raso. Não existe debate, existem frases de efeito. É um lugar vazio.

"A cultura do cancelamento é, sobretudo, sobre o cancelamento do conhecimento. Porra, como assim cancelar Kant? Vamos cancelar Freud? Daqui a pouco não tem mais nada. O cancelamento é uma queima de conhecimento extremamente moralizante."

Machado de Assis sendo cancelado porque não seria um autor apropriado para adolescentes, porque pode causar trauma, sabe (sobre o caso de Felipe Neto)? Quem tá falando isso é um branco que leu Machado de Assis, sabe?

E quando a gente pensa que a maior parte dos alunos brasileiros só vai ter a possibilidade de contato com o Machado de Assis na escola e depois nunca mais… Então, você já tá fazendo um apagamento de memória.
 

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Então, nessa situação, o cenário distópico seria um um cenário sem conhecimento, um cenário em que o conhecimento é destruído e vira uma espécie de canibalismo cego. Que eu acho que já acontece.

O Museu Nacional pegou fogo por descuido do poder público, por negligência do poder público, há dois, três anos, e ninguém mais fala disso, aí vem um cara falar que Machado de Assis não deve ser lido na escola. Como assim?

A gente trabalha com o acionamento da leitura prévia daquilo que eu já tenho de leitura para formar diante da leitura nova. Então, eu trago toda a minha leitura prévia no ato da leitura para formar opinião sobre aquilo.

Então, os horizontes de expectativa vão, digamos assim, decantando a literatura e a recepção da literatura, e aí a obra vai sobreviver a isso. O Machado de Assis vai sobreviver, Monteiro Lobato vai sobreviver, a obra vai ficar, as pessoas vão morrer e a obra vai ficar. 

Como você entende discussões sobre lugar de fala e produção literária?

É muito parecido com o que falei sobre o desconhecimento das fontes. O lugar de fala virou essa metáfora extremamente banalizada. "Se eu não sou preto, se eu não sou pobre, ou se eu não sou gay, trans, não posso falar sobre isso".

Primeiramente, precisamos pegar as teorias da enunciação. Vamos em Mikhail Bakhtin trabalhar com polifonia, com as vozes do texto. Depois, dos anos 1980 para cá, com análise do discurso, com análises da enunciação.

Nesse sentido, como pesquisador, preciso de fontes para poder me pautar em um conhecimento para formar o meu. O lugar de fala que considero é o texto. É o locus enunciativo, o lugar de enunciação.

O lugar de fala não é o sujeito, até porque o próprio conceito de sujeito é problemático. O próprio conceito de identidade é problemático. Quando pegamos Stuart Hall em "Identidade Cultural na Pós-Modernidade" a gente vê que, principalmente depois de Sigmund Freud e Ferdinand de Saussure, não é possível falar da unicidade do sujeito, muito menos da unicidade das identidades.

"Existe um radicalismo protofascista, que é sobre minar as fontes de conhecimento e, aí, o lugar de fala se transforma em um recurso para silenciar o outro."

Elas são multifacetadas. Nesse sentido, o lugar de fala se torna mais problemático ainda. Porque ele não está no sujeito, mas na performance do sujeito no texto, no enunciado. Gayatri Spivak em "Pode o Subalterno Falar?" discute isso.

Uma coisa é Graciliano Ramos, um escritor comunista, escrevendo sobre uma família de retirados, em vulnerabilidade social, pela qual ele não passou. Então ele fala sobre, ele não fala por.

Temos que discutir, daí, da impossibilidade de eu falar por um determinado grupo social. Mas quando chegamos na teoria da enunciação, essa impossibilidade é ainda mais radical, porque não é possível ninguém falar por ninguém.

"Eu acho que a literatura hoje tem um espaço enorme pra ela ser o que ela quiser."

A performance do discurso é individual. Isso dentro do próprio grupo social das pessoas pretas, dos LGBTQi+. Eu já publiquei vários livros com essa temática (LGBTQi+), mas essa questão do lugar de fala me incomoda, porque me aprisiona.

Parece que eu só tenho que falar disso. Que se eu não fizer da minha literatura uma militância agressiva eu não tenho compromisso social.

Então, sim, existe um radicalismo protofascista, que é sobre minar as fontes de conhecimento e, aí, o lugar de fala se transforma em um recurso para silenciar o outro. "Você não pode falar disso". Lugar de fala, no meu entendimento, é o próprio texto. Procuro problematizar essa questão com as fontes que citei. 

Qual é o lugar da literatura contemporânea? Na música, há uma ideia de retorno à técnica, que também se vê na pintura, no desenho. Como você enxerga a literatura nesse contexto da arte contemporânea? Para onde estamos indo, o que está acontecendo, e o que que vem sendo produzido?

Eu acho que a literatura hoje tem um espaço enorme pra ela ser o que ela quiser. Agora, qual é o lugar da literatura? Como é que isso acontece na literatura contemporânea? Estamos lidando muito com os discursos na multimodalidade. E a literatura também está entrando em trâmite.

Então, por exemplo, eu fiz uma experiência recente de publicar um livro erótico em um site de publicação de textos. Eu, um professor de quase cinquenta anos, tentando entender aquele universo. Quando eu entrei naquilo dali, porque eu achava assim, bom, isso aqui é só lugar de fanfic, é só lugar de putaria e tal, mas eu quero ver como é que funciona.

E quando eu entrei ali, vi que tem milhões de leitores, milhões, mais de 100 milhões de pessoas cadastradas, lendo os mais diversos tipos de texto. E, ali, você vai colocando aquelas hashtags, ou vai colocando aqueles filtros, e vai descobrindo que tem um tanto texto de adolescentes, experimento de uma linguagem que eles não dominam muito, mas eles querem escrever e eu acho super bacana.

"Eu não tô nem aí para correção linguística, eu quero contar minha história", como se dissessem. Então, eu acho que um dos caminhos pelos quais a literatura está transitando atualmente, é exatamente o caminho de não ter um caminho só.

Mas vamos pensar, então, na literatura que é publicada hoje. Essa literatura, primeiro, enfrenta uma crise no mercado editorial. O mercado editorial tem que se adaptar a novas plataformas, tem que se adaptar à existência da Amazon, tem que se adaptar à existência do digital, tem que se adaptar à distância de vários outros aplicativos que vão surgindo por aí.

E ele precisa sobreviver ao mesmo tempo. Então, muitos desses autores contemporâneos são pescados nessas plataformas digitais. As grandes editoras, elas estão de olho nessas publicações que rendem muitas leituras ali, pra ver se tem um potencial comercial para. Mas, em relação à forma, em relação à própria linguagem, não existe um só caminho (no contemporâneo). 

Em relação à escola e às vivências LGBTQi+, quando o senhor dava aula para mim, em 2010, havia, claramente, um "problema" em haver um professor gay na escola. Hoje, percebo que há menos estigma e muitas das discussões queer, apesar do avanço sistêmico do conservadorismo, vêm tomando espaço entre as gerações mais novas. Como o senhor enxerga isso?

Lembro de uma dinâmica que fiz em sala, quando ainda havia quadro de giz, e escrevi a palavra "profesor". Daí, pedi aos alunos para que dissessem quais palavras vinham à mente para eles.

Um deles, lá do fundão, gritou: viado!, aí eu escrevi viado no quadro, normalmente, sem me alterar em nada. A turma ficou completamente muda com aquilo.
 

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Eu entendi, depois, que aquele ato meu era ao mesmo tempo pedagógico e identitário. Depois, perguntei: "vocês tem algum problema com o fato de eu ser viado?". "Não, professor, que que é isso? Não sei o que", responderam.

E rebati: é porque isso pode ser discutido, eu acho que sala de aula não é lugar de tabu, mas um lugar de produção de conhecimento, só que, para produzir conhecimento, a gente precisa de fontes diversas. Várias vozes se somando.

Como você enxerga esses movimentos que tentam impedir isso na sala de aula? Nos Legislativos, de formas muito agressivas, tanto no federal, quanto nos municipais, há crescimento de projetos como o "Escola Sem Partido", ou a proibição de discussões de gênero e sexualidade.

Eu acho que elas são pífias, porque, quando a gente chega na sala de aula, não vai ser por decreto que a gente vai dar aula, não vai ser por um projeto de lei, entendeu?

E a gente tem, assim, uma das coisas que eu falo muito, "ah, os jovens não leem". Gente, nunca se leu tanto como se lê hoje. O jovem, basicamente, é um sujeito linkado o tempo inteiro, até no sonho. O acesso à informação é gigante.

Evidentemente que eu não tô considerando aqui a qualidade dessa informação, até porque a gente tá vendo aí, né? A indústria das fake news, não é?

Agora, essas iniciativas do Legislativo (se aprovadas), quando chegarem na sala de aula, não vão vingar. É meio que uma gracinha política para poder agradar o próprio eleitorado.

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