Sob ameaça de desmonte pelo governo de Jair Bolsonaro, a política brasileira de direitos humanos completa 25 anos. Entre maio e junho de 1996, o jurista José Gregori divulgava e implantava o Programa Nacional de Direitos Humanos. As bodas de prata do primeiro PNDH do País ocorrem num momento marcado pela maior crise de imagem do Exército no período democrático, por uma revisão do plano pelo atual governo, pelo avanço das milícias nas cidades e pela operação da Polícia Civil na comunidade do Jacarezinho, no Rio, que resultou em 28 mortos.
O plano foi parte de um conjunto de ações impactantes na relação entre o Estado e a sociedade civil, como a reparação de famílias de vítimas do regime militar (1995), a tipificação do crime de tortura com penas severas (1997), a transferência para a Justiça comum dos crimes dolosos praticados por policiais militares (1996), a proteção de testemunhas de crimes cometidos por policiais (1999) e a criação do Ministério da Defesa sob comando civil (1999).
As medidas tomadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso ajudaram a consolidar a transição ao regime democrático e o poder civil na política. A criação da pasta da Defesa, sem militar no comando, em 1999, viria na esteira das mudanças. Agora, mais de duas décadas depois, sobram movimentos contrários
Na quinta-feira passada, o comandante do Exército, Paulo Sérgio Nogueira, atendeu pedido de Bolsonaro para não punir o general Eduardo Pazuello pela presença em ato político. O fantasma da indisciplina também ronda os quartéis das polícias estaduais, com excesso de violência e ameaças de motins.
"Hoje, os governadores da oposição têm que lidar com delicadeza com os PMs, porque já houve motins, e o presidente os estimula. As Polícias Militares são forças de oposição aos governadores. É a desmontagem do Estado Democrático de Direito que surgiu com a Constituição de 1988", afirma o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro. "O coroamento do retrocesso das violações dos direitos humanos é justamente esse risco de os militares da ativa se envolverem em manifestações políticas. É um momento gravíssimo", complementa.
Um dos responsáveis pela concepção do PNDH, Pinheiro aponta uma "imaturidade" democrática. "Confesso que tudo o que estudei não ajudou a prever que o Brasil seria tomado de assalto por um governo de extrema-direita."
O cientista político experimentou mais recentemente um pouco do autoritarismo que vem ajudando a combater no Brasil e no mundo. Foi incluído em um dossiê elaborado pelo Ministério da Justiça para colocar na mira servidores e professores universitários antifascistas. Ele se orgulha do adjetivo, mas diz que a arapongagem poderia ter o trabalho poupado se buscasse na internet as pesquisas que desenvolve.
Violência
Ativista dos direitos humanos, negra e feminista, a advogada Priscila Pamela dos Santos, 38 anos, avalia que momento é de retrocesso. "Subestimamos um pouco o potencial lesivo dele (do presidente) e não estávamos preparados para lidar com essas avalanches de retrocesso", afirma.
Na presidência da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB de São Paulo, ela observa que muitas das proteções ainda se dão em razão das instituições não governamentais, que veem práticas ilegais e denunciam. "Essas instituições fazem, às vezes, o trabalho do governo federal."
O PNDH foi o primeiro programa para proteção e promoção de direitos humanos da América Latina. No prefácio da primeira edição está expresso o objetivo de servir para resolução de problemas estruturais como os causados por desemprego, fome, dificuldades do acesso à terra, à saúde, à educação e concentração de renda.
"O País avançou razoavelmente na questão dos direitos políticos, mas a violência contra os mais pobres precisa ser contida sempre", diz Fernando Henrique ao jornal O Estado de S. Paulo. "As desigualdades são grandes entre nós e isso preocupa, chegando a limitar os efeitos positivos da democracia", ressalta "Ainda que os efeitos das políticas que implementamos hajam sido positivos, na questão de direitos humanos convém estarmos sempre alertas."
Governo Bolsonaro faz revisão a portas fechadas
No ano em que completam-se 25 anos desde que os direitos humanos foram oficializados como política de Estado, o governo de Jair Bolsonaro prepara uma revisão do plano com uma abordagem oposta àquela que rendeu reconhecimento internacional à iniciativa original implementada em meados de 1996.
Em vez de uma construção coletiva, a análise é feita a portas fechadas, desde fevereiro, por um grupo instituído pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, de Damares Alves. O término do trabalho está previsto para novembro.
Há duas semanas, o Conselho Nacional de Direitos Humanos, com seus representantes da sociedade civil, cobrou da ministra informações sobre o estágio das discussões internas. Não houve resposta.
"A portaria parte da premissa que o PNDH-3 precisa ser refeito, superado. Não concordamos. O plano é bom, com ampla participação popular, e não foi ainda cumprido. Precisamos discutir o que foi cumprido para depois discutir atualização", afirma Yuri Costa, presidente do conselho.
Para Costa, a revisão é ainda mais esdrúxula porque entre os conselhos extintos pelo governo Bolsonaro ainda em 2019, um era voltado à análise da execução do último programa, de 2009. "O risco maior é perdermos a participação social para um posicionamento governamental. Quem entende as demandas da população de rua, das mulheres, da população indígena são eles mesmos", alerta.
À frente da proposta de alterar o plano, a ministra Damares Alves enfrenta pressões das redes bolsonaristas. Ela apagou uma nota oficial em que lamentava o massacre de Jacarezinho.
Questionada pela reportagem do jornal Extra sobre o motivo de ter apagado a mensagem, disse que a pergunta era uma "palhaçada".
Já o presidente Bolsonaro elogiou numa 'live' a operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro que resultou na morte de 28 pessoas, dos quais 27 era moradores, no último dia 6 de maio. Dos mortos, três eram alvo de mandados.
O cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, um dos responsáveis pela concepção do PNDH, alerta que tortura e pena de morte perdem espaço para a educação na percepção dos brasileiros como solução para a segurança, segundo pesquisas.
Em nota, o ministério de Damares informou que o grupo de trabalho oferecerá "recomendações para o aprimoramento" da política de direitos humanos. Diz, ainda, que especialistas e grupos representativos serão chamados para colaborar "em dado estágio de desenvolvimento da análise, do surgimento das necessidades e das carências observadas".
A pasta também destacou que, "apesar da pandemia e todas as dificuldades geradas desde seu início", o governo Bolsonaro não deixou de "investir nas demandas de direitos humanos, sem deixar de atentar aos grupos mais vulneráveis".