Pianista Francisco Cerqueira Tenório Júnior, o Tenorinho, nunca mais foi visto depois de show em Buenos Aires, em 1976. Seu sumiço e como este se relaciona à ditadura argentina nunca foram totalmente esclarecidos, mas sua família ainda considera entrar em mais uma luta judicial para que ele seja reconhecido como vítima. Logo depois de um show em um teatro lotado em Buenos Aires, o pianista da banda de Vinicius de Moraes e Toquinho saiu do hotel para ir à farmácia e para comprar cigarro. Nunca mais foi visto.
Eram tempos de perseguições, sequestros, torturas e mortes de opositores na Argentina e no Brasil. Mas o caso do músico Francisco Cerqueira Tenório Júnior, o Tenorinho, é também intrigante porque ele não tinha atividades políticas, segundo pessoas próximas. Seu destino, como o de outras vítimas daquele período atroz, ainda tem várias lacunas.
Na noite de 18 de março de 1976, após o show no teatro Gran Rex, na Avenida Corrientes, Tenorinho, de 34 anos, atravessou as portas do hotel Normandie, onde estava hospedado com os outros artistas. Sem saber, deixava o local para sempre.
Vinicius o procurou em hospitais e delegacias de polícia da capital argentina.
"Vinicius ainda permaneceu alguns dias na Argentina tentando esclarecer o caso e nada conseguiu", disse Toquinho em entrevista por e-mail à BBC News Brasil.
No Brasil, vários músicos, entre eles Aldir Blanc e Gonzaguinha, fizeram abaixo-assinado pedindo respostas sobre o paradeiro de Tenorinho. A mobilização não foi suficiente para que ele fosse localizado.
Toquinho disse que o pianista "era de grande talento, considerado um dos músicos mais importantes da Bossa Nova". E lembrou que seu destino incerto faz parte dos versos da música Lembranças, que fez com Miltinho: "Tenório saiu sozinho na noite / Sumiu / Ninguém soube explicar".
Seu sequestro ocorreu seis dias antes do golpe militar na Argentina, no dia 24 de março. Mas naquela data em que o músico saiu e não voltou, o país já vivia a tensão provocada por atos antidemocráticos contra o governo da então presidente Isabel Perón e que culminaram no golpe.
"A Argentina vivia mais um momento político delicado. Tumultos e insubordinações exigiam o exército nas ruas numa busca constante a conhecidos terroristas e outros suspeitos", opinou Toquinho.
Quase 40 anos depois do desaparecimento do pianista, a mulher de Tenorinho, Carmem Magalhães Tenório Cerqueira, questionou, em 2014, à Comissão Nacional da Verdade, durante o governo da ex-presidente Dilma Rousseff: "Onde está Tenorinho?".
No depoimento, ela lembrou que estava grávida do quinto filho do casal quando o caso ocorreu.
"O Tenório era uma pessoa que nunca teve envolvimento algum com política. Ele era uma pessoa que vivia, assim, pra música. Posso até dizer que ele era desligado da realidade imediata. E o que aconteceu com ele é realmente uma coisa que... é um absurdo isso", disse na época.
Versões para o desaparecimento
Existem duas versões que teriam levado o pianista a ter sido alvo do sequestro.
Barbudo, ele pode ter sido confundido com o que na época os ditadores chamavam de "subversivo" - pejorativo que incluía a aparência. A outra hipótese é que ele tenha sido marcado pelas ditaduras dos dois países que na época faziam parte da chamada Operação Condor, que atuou no Cone Sul.
Ouvidos pela BBC News Brasil, o ex-ministro da Justiça e Secretaria Nacional de Direitos Humanos do governo Fernando Henrique, José Gregori, e a professora Maria Guiomar Frota, da Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais, têm percepções diferentes sobre o possível destino de Tenorinho.
Frota morou seis meses na Argentina, em 2015, pesquisando os arquivos envolvendo o sumiço do músico e de outros brasileiros mortos na Argentina; e de argentinos mortos no Brasil, na Operação Condor.
"Ele teve o azar de estar nas ruas quando aquelas forças estavam perseguindo e prendendo", disse Frota, falando de Belo Horizonte.
Ela lembra que a cooperação entre os governos militares, dentro da Operação Condor, tinha sido intensificada em 1976.
Gregori, por sua vez, acha que em função da mesma Operação Condor, Tenorinho já estaria na mira dos repressores.
"Não tenho elementos, mas a minha convicção é que ele foi liquidado por alguma denúncia brasileira", disse, falando de São Paulo.
A situação de Tenorinho está reunida em várias pastas com documentos amarelados no arquivo do Museu Sitio da Memória ESMA. Ali, no bairro portenho de Nuñez, funcionou o centro de tortura Escola de Mecânica da Marinha, durante a ditadura (1976-1983). Nas pastas estão reunidas as informações disponíveis sobre o caso.
Tenorinho, segundo a versão do repressor argentino Claudio Vallejos, teria sido sequestrado, torturado e morto ali naquele lugar onde prédios dos quarteis são mantidos. Mas os documentos apresentados por Vallejos não foram ratificados por seus superiores, lembra Frota. As declarações de Vallejos, de que o corpo de Tenorinho teria sido sepultado com outro nome no cemitério da Chacarita, em Buenos Aires, também não foram provadas, recorda a pesquisadora.
Grande parte dos documentos, além de reportagens, são da Comissão Provincial pela Memória (DIPBA), da Província de Buenos Aires, que entregou os documentos à Comissão Nacional da Verdade.
Foi na Comissão também que a mulher de Tenorinho disse que acabou ficando "solitária" com cinco filhos e que, sem dinheiro, contou com a ajuda de músicos (não famosos) muito próximos do seu marido.
"Nenhum dos acompanhantes que iam na excursão me procurou. (Encontrei) Vinicius de Moraes uma vez, por acaso. Nunca ninguém me disse uma palavra, parecia assim, que as pessoas fugiam de mim", disse.
O advogado da viúva de Tenorinho, Marlan Marinho, disse à BBC News Brasil que "a comissão de desaparecidos da Argentina entendeu que a família de Tenório devia ser indenizada por ter sido ele vítima dos atos da ditadura argentina e que a comissão de desaparecidos brasileira entendeu que a família de Tenório devia ser indenizada por identificar omissão do governo brasileiro na defesa e proteção de seu cidadão em solo argentino".
No entanto, disse, a ação judicial que a família moveu contra a União foi "julgada improcedente" por entender que não existem provas do envolvimento do governo militar da época no desaparecimento do artista.
"Do ponto de vista processual, as três decisões são definitivas. Não apareceram novas provas sobre o caso, mas ainda estudamos a propositura de uma nova ação judicial", disse Marinho.