Radioatividade é baixa no estádio que receberá partidas de softbol nestas Olimpíadas. A cerca de 60 km dali, porém, ainda há bairros inabitáveis. Recente plano de despejar no mar água contaminada da usina aumenta a desconfiança com o governo do Japão. Cidade de Fukushima, no Japão, vista a partir do parque Hanamiyama
Happy Come via Flickr/C.C 2.0
Dez anos depois do maior desastre nuclear da história japonesa, Fukushima recebe a primeira competição oficial dos Jogos Olímpicos de Tóquio: uma partida de softbol entre Japão e Austrália marcada para as 21h desta terça-feira (20) (horário de Brasília), antes mesmo da Cerimônia de Abertura.
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A cidade de Fukushima foi escolhida subsede da primeira fase do softbol e do beisebol como parte da estratégia "Jogos da Reconstrução". Trata-se de uma tentativa do comitê organizador local em mostrar para o mundo que toda a região afetada pelo desastre triplo de 2011 — terremoto, tsunami e vazamento radioativo — está se recuperando.
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O problema é que moradores das áreas litorâneas próximas à usina destruída veem com ceticismo esse discurso. Embora o estádio que receberá os jogos fique a 67 quilômetros da central nuclear, em uma área praticamente livre das altas doses de radioatividade, ainda há pequenas cidades total ou parcialmente vazias por causa do desastre de 2011.
Além disso, decisões recentes tomadas pelo governo japonês sobre o decomissionamento — isto é, a desinstalação segura da Usina Nuclear Fukushima Daiichi — irritaram a comunidade pesqueira do Japão e inclusive governos de países da região, como China e Coreia do Sul. E isso contrasta com o tom otimista dos organizadores dos Jogos Olímpicos de Tóquio.
Nesta reportagem você vai ler que:
Para os atletas e moradores da cidade de Fukushima, os níveis de segurança estão bons, do ponto de vista da ciência nuclear
Porém, mais de 30 mil moradores, na maioria da parte litorânea da região de Fukushima, não se sentem seguros em voltar para casa
O desastre de 2011 foi um duro golpe à indústria pesqueira da região. Isso afetou toda a cadeia econômica de Fukushima e contribuiu para o esvaziamento das cidades próximas
O recente plano do governo japonês em jogar água contaminada ao mar foi recebido com fortes críticas de moradores pelo perigo de espalhar material radioativo e acabar, de vez, com as esperanças da retomada do setor pesqueiro
É seguro competir em Fukushima?
Estádio Fukushima Azuma, na cidade de Fukushima (Japão). Local receberá jogos de softbol e beisebol nos Jogos Olímpicos
©Tokyo 2020
Medidores de radiação instalados na cidade de Fukushima mostram níveis dentro do que as maiores autoridades em segurança nuclear consideram seguros. Perto do Estádio Azuma, sede de partidas da primeira fase do softbol e do beisebol, os índices estavam no início deste mês em cerca de 0,09 microsievert por hora — essa é a unidade de medida da dose de radiação recebida por hora em um local.
É um dado bastante satisfatório. Esse valor representa cerca de 0,8 milisievert por ano. Ou seja, dentro do limite anual de 1 milisievert que organizações como a Associação Nuclear Mundial avaliam como seguro e normal para a maioria das pessoas.
INFOGRÁFICO - Comparativo das doses de radiação
Elcio Horiuchi/Arte/G1
Ao G1, o professor Fumihiko Imamura, que lidera as pesquisas sobre grandes desastres na Universidade Tohoku — instituição localizada exatamente na região japonesa mais atingida pelo tsunami de 2011 — relata que a preocupação não é com a cidade de Fukushima em si.
"As pessoas estão vivendo normalmente na cidade de Fukushima. Os níveis de radiação ali estão normais", afirma.
Onde mora o problema
Jornalistas e funcionários da Tokyo Electric Power Co. (Tepco) usam roupas especiais durante visita, em maio de 2016, à usina Nuclear de Fukushima.
Tomohiro Ohsumi / Pool / Reuters
Os especialistas explicam que o problema está a 67 km do Estádio Azuma, onde fica a Usina Nuclear Fukushima Daiichi, destruída pelo tsunami de 11 de março de 2011. Dez anos depois do desastre nuclear, os números de radiação nas pequenas cidades de Futaba e Okuma ainda estão altos, acima das margens de segurança.
Aqui, vale uma diferenciação: Futaba e Okuma fazem parte da prefeitura de Fukushima, uma das subdivisões do território japonês. Essa prefeitura tem sede na cidade de mesmo nome, que é onde os jogos de beisebol e softbol ocorrerão.
INFOGRÁFICO - Fukushima nos Jogos Olímpicos
Elcio Horiuchi/Arte/G1
Em Okuma, por exemplo, um dos medidores registrou em junho deste ano 6,52 microsieverts por hora — ou seja, 57 milisieverts por ano. Valor muito acima da dose de 1 microsievert por ano por pessoa, limite recomendado pelas autoridades em segurança nuclear. Está acima até do teto estabelecido por autoridades internacionais para funcionários de usinas nucleares, que costuma ser de 50 milisieverts por ano.
Por isso, Futaba e Okuma ainda têm áreas desertas, deixadas dez anos atrás. Elas estão dentro de um raio de 20 km determinado como zona de exclusão. Só em algumas horas por dia ou por semana os antigos moradores têm acesso. Veja a reportagem em VÍDEO abaixo.
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Assim, estima-se que mais de 30 mil moradores de toda a prefeitura de Fukushima não tenham retornado às suas casas desde o desastre nuclear de 2011.
"Conseguimos reconstruir as casas, restabelecer a eletricidade. Mas, como muitos deixaram a região, há bairros esvaziados nas cidades, o que gera problemas de segurança", explica o professor Imamura.
Mar contaminado, pesca prejudicada
Galões armazenam água contaminada retirada da usina nuclear de Fukushima, no Japão, em imagem de 2019
Issei Kato/Reuters/Arquivo
Uma das consequências mais graves do desastre nuclear foi a contaminação das águas do Oceano Pacífico no litoral de Fukushima. Isso foi especialmente grave porque ali havia famílias inteiras que dependiam da pesca para sobreviver.
Ou seja, o desastre da Usina de Fukushima deixou não só um impacto para os pescadores como também quebrou toda uma cadeia de atividades econômicas da região, explicou o professor Imamura. Isso aumenta o isolamento de toda a região em relação ao resto do país.
"Agricultura e pesca foram dois setores prejudicados pelo desastre e ainda não conseguiram se recuperar. E os mais jovens não querem voltar porque essas atividades pagam menos do que empregos em empresas ou indústrias privadas", aponta Fumihiko Imamura, da Universidade de Tohoku.
O professor de engenharia nuclear da Coppe/UFRJ, Aquilino Senra, concorda que a atividade pesqueira na região não voltará tão cedo: "Não há condições de retomar a pesca ali próximo à usina" afirma. E, na avaliação dele, a situação dos pescadores pode ficar ainda mais crítica nos próximos anos.
Isso porque, no ano passado, o governo japonês e a companhia Tokyo Electric Power Company anunciaram o plano de devolver ao mar mais de 1 milhão de toneladas da água usada para resfriar o núcleo da usina destruída. Relembre no VÍDEO abaixo.
Japão decide despejar, no mar, água contaminada da usina nuclear de Fukushima
As autoridades locais garantem que o procedimento é seguro, mas especialistas alertam para o risco de contaminação com estrôncio 90, carbono 14 e trítio — que são radioativos e podem causar doenças em longo prazo, como alguns tipos de câncer, na população que tiver contato.
No entanto, a proposta revoltou a comunidade pesqueira de Fukushima, órgãos ambientais internacionais e governos de outros países da região. O Ministério das Relações Exteriores da China disse em abril que o procedimento era "extremamente irresponsável". A Coreia do Sul foi além, e chegou a convocar o embaixador japonês em Seul para prestar esclarecimentos.
O professor Senra, especialista em energia nuclear, explica que essa água contaminada está em uma série de tambores construídos ao redor da usina. Ali, com o tempo, essas substâncias perdem radioatividade e se tornam menos nocivas.
Por isso, ele opina que as autoridades japonesas deveriam avaliar construir novos tambores e deixar para despejar no mar daqui a alguns anos, em outro momento mais seguro.
“Há correntes marítimas que podem direcionar essa carga radioativa para áreas que tenham produção pesqueira. Isso é uma decisão que eu vejo como crítica. Acho que o que deveria ser feito era continuar o armazenamento por mais tempo — e com isso aperfeiçoar o tratamento”, avalia Senra.
Otimismo e preocupação
Esculturas inauguradas nesta terça-feira (13) em Tóquio, no Japão, homenageiam a reconstrução das prefeituras de Iwate, Miyagi e Fukushima, destruídas no tsunami de 2011
Kazuhiro Nogi/AFP
O plano de usar os Jogos Olímpicos de Tóquio como "Jogos da Recuperação e Reconstrução" continua de pé para os organizadores do evento e autoridades locais.
Não só em Fukushima, mas também na prefeitura de Miyagi, que teve bairros inteiros devastados pelo tsunami de 2011. Aliás, será lá a primeira participação do Brasil nestas Olimpíadas: a seleção feminina de futebol joga contra a China na cidade de Rifu, em Miyagi, a partir das 5h de quarta (21) (horário de Brasília).
Mas esses esforços têm surtido efeito?
Cerimônia de acendimento da tocha em Fukushima, Japão, em 25 de março de 2021
Kim Kyung-Hoon/Pool/Reuters/Arquivo
O professor Fumihiko Imamura, da Universidade de Tohoku, acredita que sim. O especialista em desastres e pesquisador de tsunamis tem participado dos planos de recuperação do nordeste japonês e aponta as duas principais linhas de ação que governos e moradores têm tomado:
Prevenção — maior monitoramento da atividade sísmica para gerar alertas de terremoto e tsunami mais rapidamente.
Reconstrução — os bairros destruídos pelos tsunamis não só ganharam novas construções como também receberam maior proteção, como diques, barreiras e canais para conter ondas gigantes
Para Imamura, neste momento, a preocupação com o evento em Fukushima e outras partes do Japão não é a radiação que persiste nos arredores da usina nem possíveis terremotos. Na opinião dele, o que tem gerado temores entre os habitantes da região é a pandemia do coronavírus e o fluxo de atletas.
O Comitê Olímpico Internacional (COI) espera que ao menos 80% dos atletas e integrantes de comissões técnicas estejam vacinados até a abertura. Todos os participantes serão rigorosamente testados e precisarão seguir protocolos que limitam a movimentação pelo país ao longo do evento. A presença do público está vetada em Tóquio e outras sedes — incluindo Fukushima. Mesmo assim, até que os Jogos, enfim, terminem, em 8 de agosto, permanecerá a expectativa sobre a eficácia dessas diretrizes em evitar mais um surto de Covid-19.