Apesar do início da vacinação contra Covid-19 em várias partes do mundo, cientistas alertam que medidas como uso de máscaras e distanciamento social não devem ser descartadas tão cedo. Enfermeiro prepara a aplicação de uma dose da vacina da Pfizer/BioNTech contra a Covid-19 aplicada em um hospital de Londres nesta foto de 8 de dezembro de 2020
Frank Augstein/Pool/Reuters/Arquivo
Muitos de nós aguardamos ansiosos para que vacinas eficazes contra o coronavírus nos transportem de volta às nossas vidas pré-Covid-19.
Mas muitos cientistas alertam que sua chegada provavelmente não significará descartar nossas máscaras tão cedo.
Como funcionam as vacinas?
As vacinas são amplamente consideradas uma das maiores conquistas médicas do mundo moderno.
Todos os anos, elas impedem cerca de 2 a 3 milhões de mortes, ao combater mais de 20 doenças fatais, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Doenças infantis que eram comuns na geração passada são cada vez mais raras hoje. E a varíola, que matou centenas de milhões de pessoas, foi erradicada.
Mas esses sucessos levaram décadas para serem alcançados, e muitos de nós agora esperamos que vacinas eficazes contra o coronavírus tenham resultados semelhantes em um período de tempo radicalmente mais curto.
As notícias de que algumas das vacinas recentemente anunciadas têm uma eficácia acima de 90%, ou seja, cerca de nove em cada dez pessoas que as recebam estariam protegidas contra a Covid-19, levaram muitos a acreditar que em breve poderíamos estar abandonando o distanciamento social e descartando nossas máscaras faciais.
Nos EUA e no Reino Unido, onde a aprovação regulatória para as vacinas já foi dada e programas de vacinação em massa estão sendo planejados, alguns até sugeriram que a vida poderia voltar ao normal no início de 2021.
Mas muitos cientistas e especialistas em saúde global estão alertando que as vacinas, com suprimentos iniciais limitados e distribuição a grupos selecionados, embora protegendo grupos vulneráveis e profissionais de saúde da linha de frente, provavelmente não nos transportarão de volta ao nosso antigo modo de vida tão cedo.
Foi o que disse o próprio diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus.
"Uma vacina irá complementar as outras ferramentas que temos, não substituí-las", disse ele. "Uma vacina por si só não vai acabar com a pandemia."
Uma explicação para essa lacuna de expectativas, entre o otimismo de alguns políticos e do público, por um lado, e a hesitação de muitos profissionais da ciência por outro, poderia ser, em parte, a falta de compreensão de quão grande é a missão de obter vacinas suficientes para um número considerável de pessoas.
O que muitos de nós talvez não percebam é que, quando falamos de doenças infecciosas (aquelas que passam de pessoa para pessoa), para proteger verdadeiramente a todos, precisamos vacinar em grande número.
Isso ocorre porque o poder de uma vacina não está apenas em sua capacidade de nos proteger como indivíduos, mas em sua capacidade de proteger as pessoas ao nosso redor e as comunidades em que vivemos.
Veja o caso hipotético abaixo.
Como as vacinas nos protegem
Como as vacinas funcionam?
O problema é que nenhuma vacina é 100% eficaz.
A vacina contra o sarampo é uma das melhores e protege 95% a 98% das pessoas.
As vacinas da Pfizer/BioNTech e da Moderna contra a Covid-19 recentemente anunciadas, com eficácia de mais de 90%, também são insuficientes, e ainda não sabemos se essa porcentagem diminuirá com o tempo ou fora das condições do ensaio clínico.
Isso significa que cerca de uma em cada dez pessoas não estaria protegida contra a Covid-19, mesmo se vacinássemos todas as pessoas. Sem 100% de cobertura, o que é improvável em qualquer programa de vacinação, o número de pessoas em risco seria maior.
Já sabemos que as pessoas mais velhas tendem a ter uma resposta mais fraca à vacinação, embora as vacinas contra o coronavírus tenham resultados encorajadores a esse respeito.
Além disso, algumas pessoas em nossas comunidades, por motivos de saúde, como aquelas que estão passando por algumas formas de tratamento contra o câncer, talvez não possam ser vacinadas.
Isso significa que um grupo significativo de pessoas ao nosso redor sempre estará em risco. Alguns de nossos amigos e familiares podem estar entre eles.
Mas ainda há uma maneira de garantir que protejamos indiretamente a todos: aproveitando o poder da vacinação em massa.
Se vacinarmos um número suficiente de pessoas em nossa comunidade, algo incrível pode acontecer. Criaremos vários escudos invisíveis que interromperão a cadeia de transmissão do patógeno (como um vírus ou bactéria), protegendo indiretamente nossos amigos e familiares vulneráveis.
Isso é chamado às vezes de imunidade de grupo ou imunidade de rebanho.
Funciona assim:
Como vacinar muitas pessoas protege os vulneráveis
'Imunidade de rebanho': o que é e quais os riscos de deixar a pandemia correr seu curso
Então, quantos de nós precisaremos receber a vacina contra o coronavírus?
O que ainda não sabemos — e isso é crucial para atingir os níveis de proteção da chamada 'imunidade de rebanho' — é até que ponto as atuais candidatas à vacina Covid-19 são capazes de prevenir a transmissão ou oferecer imunidade.
Podemos ter que esperar algum tempo para saber com certeza, mas o cientista por trás da vacina da Pfizer/BioNTech sugere que há uma chance de que pelo menos uma delas possa ajudar a reduzir o risco.
Mas mesmo se presumirmos que elas ajudam a bloquear a transmissão, o número de pessoas que precisaria receber a vacina para proteger totalmente as mais vulneráveis é alto.
Isso ocorre porque, mesmo com níveis significativos de inoculação com uma vacina eficaz, um grande número de pessoas ainda ficaria exposto, diz David Salisbury, ex-diretor de imunização do Departamento de Saúde do Reino Unido e membro associado do centro de estudos Chatham House.
E isso se resume a uma matemática simples, explica ele.
Por que as pessoas ficam desprotegidas — mesmo com níveis altos de vacinação
Os cientistas ressaltam que, até que tenhamos vacina suficiente para ir além da vacinação de grupos de risco contra a Covid-19 e atingir uma grande proporção da população, o distanciamento social não chegará ao fim.
"Se protegermos apenas os vulneráveis, interromperemos as mortes que estão acontecendo nesse grupo e reduziremos a carga sobre os hospitais, mas não interromperemos a transmissão", diz Salisbury.
Ou seja, a transmissão continuará entre as pessoas que não foram vacinadas, que podem então espalhar o vírus para pessoas vulneráveis não vacinadas e pessoas vulneráveis que foram vacinadas, mas não apresentaram uma resposta imunológica protetora, explica.
Isso inevitavelmente significa que, para evitar o desenvolvimento de bolsões de transmissão e a exposição de amigos e familiares vulneráveis em nossas comunidades, precisaremos atingir altos níveis de vacinação em todas as idades em todas as áreas geográficas.
Dado o quão interconectado o mundo está em termos de movimento de pessoas e comércio, isso também significa fazer o mesmo em todos os países do mundo.
"Esta é uma pandemia, não é uma epidemia nacional, então, temos que parar o vírus em todos os lugares, e, até conseguirmos isso, nenhum lugar permanecerá seguro", diz Salisbury.
Atualmente, o plano global de imunização indica que aqueles que correm mais risco e os profissionais de saúde receberão primeiro o número limitado de doses de vacina disponíveis.
Mas alguns países já indicaram que planejam vacinar além dos grupos de risco quando os estoques permitirem, incluindo os EUA e o Reino Unido.
O chefe do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS, na sigla em inglês) disse que poderá demorar até abril para que todos aqueles sob maior risco recebam as doses, mas o objetivo final do governo é vacinar o maior número possível de pessoas com mais de 16 anos.
No geral, a OMS estima que entre 65% e 70% das pessoas precisarão estar imunes antes que a transmissão seja interrompida, a imunidade do rebanho seja alcançada e todos e em todos os lugares declarados seguros.
A professora Azra Ghani, epidemiologista do Imperial College London, no Reino Unido, especializada em modelagem matemática de doenças infecciosas, diz acreditar que precisamos chegar a 70% para estarmos "seguros".
Segundo Ghani, isso irá, em última instância, nos permitir retomar a normalidade, mas chegar lá será um processo difícil, mesmo se não houver imprevistos.
"Isso vai acabar com a pandemia, é apenas uma questão de quando, e essa é a parte mais difícil de prever, porque lançar essa vacina é o maior desafio", diz.
Então, como vacinar bilhões de pessoas?
Imunizar a maioria dos 7,8 bilhões de habitantes do mundo será uma tarefa imensa. Nada nesta escala foi tentado antes.
As vacinas e seus equipamentos — como os frascos para transportá-las — precisam ser fabricados em grandes quantidades. O fornecimento de vacinas pode não ser suficiente para atender a demanda por algum tempo.
As vacinas precisam ser então transportadas das fábricas e entregues aos centros de saúde, incluindo aquelas em comunidades isoladas e de difícil acesso em todo o mundo.
Algumas das vacinas também podem exigir armazenamento refrigerado, por exemplo, a vacina da Pfizer precisa ser mantida a temperaturas de -70°C.
O NHS já está montando uma rede de centros de vacinação em massa para gerenciar a tarefa logística depois que o país se tornou o primeiro no mundo a aprovar a vacina da Pfizer.
Mas, para outros, o desafio será maior.
O gigante de logística alemão Deutsche Post DHL alertou que grandes partes da África, Ásia e América do Sul têm instalações de resfriamento insuficientes para cumprir as últimas etapas do processo de entrega, bem como armazenamento insuficiente, o que "representaria o maior desafio" para vacinar em larga escala.
Convencendo céticos
E há ainda outra barreira que pode retardar a tarefa de alcançar pessoas suficientes.
As autoridades de saúde terão que superar o número crescente de pessoas que relutam em receber vacinas — um fenômeno considerado uma das dez principais ameaças à saúde global pela OMS.
No Reino Unido, cerca de 36% das pessoas disseram que não tinham certeza ou consideravam muito improvável se concordariam em ser vacinadas, indicou um estudo realizado por instituições científicas do país, como a British Academy e a Royal Society.
Números semelhantes foram registrados por uma enquete do YouGov no mês passado.
Essa resistência, junto com o aumento da desinformação sobre a vacinação — o chamado movimento antivacina — pode tornar a imunidade de rebanho mais difícil de ser alcançada em muitos países.
Ghani sugere que tranquilizar as pessoas que estão atualmente se sentindo "um pouco nervosas" sobre a rapidez com que as vacinas Covid-19 foram desenvolvidas será crucial.
Então, uma vacina pode realmente trazer de volta a normalidade?
Apesar dos desafios científicos e práticos de fornecer uma vacina eficaz em todo o mundo, a boa notícia é que parece provável que as vacinas de primeira geração terão um impacto significativo na batalha global contra a Covid-19.
A curto prazo, elas ajudarão a evitar que os mais vulneráveis em nossas comunidades desenvolvam doenças graves e morram, especialmente os idosos com doenças preexistentes e os profissionais de saúde da linha de frente.
O anúncio da Pfizer/BioNTech de que sua vacina parece proteger 94% dos adultos com mais de 65 anos é importante nesse desafio.
A má notícia é que pode levar meses ou anos para vacinar um número suficiente da população global para tornar seguro todo o mundo interconectado e chegar a um ponto em que todos possamos voltar ao normal.
Era da 'vacina plus'
Insinuações de que as vacinas seriam capazes de nos levar de volta para o que éramos antes da Covid-19 na próxima Páscoa deram às pessoas uma expectativa não realista, diz Salisbury, e tal resultado, na ausência da interrupção da transmissão, é "improvável" .
Mesmo em países com boa infraestrutura de saúde e experiência em programas de vacinação em massa será um desafio alcançar pessoas suficientes para quebrar a cadeia de transmissão, diz ele.
Embora as perspectivas para os grupos de risco sejam "indubitavelmente melhores" no próximo ano, afirma Salisbury, o restante de nós provavelmente tomaremos medidas extras por algum tempo, algo que ele se refere como "vacina plus".
Ghani concorda e estima que levará mais dois anos para "fazer o mundo todo voltar ao normal", mas com o processo provavelmente mais rápido para países de alta renda.
Mas ela adverte que, embora as vacinas possam acabar com a pandemia, elas não vão "nos livrar do vírus", e o mundo precisará "continuar vacinando", assim como faz com outras doenças.
Portanto, com uma nova era de "vacina plus" possivelmente surgindo na batalha contra a Covid-19, é provável que 2021 nos obrigue a continuar mantendo todas as precauções por vários meses — e possivelmente mais.
Texto e produção de Lucy Rodgers, animação e ilustrações de Sandra Rodriguez Chillida, design adicional de Irene de la Torre Arenas, desenvolvimento de Evisa Terziu.