As temperaturas mínimas, que costumam ser registradas quando não há sol, também estão subindo — e podem ter relação com eventos climáticos extremos, como a onda de calor na América do Norte. O monitoramento das temperaturas não só durante o dia, mas também à noite, deverá ser crucial para entender as mudanças climáticas
AFP
Quando se fala do aquecimento global, é comum a menção ao aumento das temperaturas máximas, que costumam ocorrer durante o dia.
Mas o impacto das ações humanas no clima do planeta tem se mostrado também no aumento das temperaturas mínimas, que costumam ser registradas nos horários em que não há sol.
Ou seja, as noites em geral estão mais quentes.
Na realidade, especialistas têm observado que as temperaturas noturnas estão subindo mais do que as diurnas, o que alguns cientistas chamam de "assimetria de aquecimento". Este padrão cada vez mais comum pode ter relação com eventos climáticos extremos, como a onda de calor que está afetando parte dos Estados Unidos e do Canadá — um acontecimento "único em 1.000 anos" e "virtualmente impossível" de não ser influenciado pelas ações humanas, segundo a rede de pesquisa World Weather Attribution.
As alterações nas temperaturas mínimas, e não só as máximas, pode ser um detalhe crucial para entender as mudanças climáticas.
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Máximas e mínimas
O mês passado foi, desde que há registros, o junho mais quente nos Estados Unidos e Canadá, com centenas de pessoas mortas e afetadas pelo calor extremo.
Ele se intensificou entre o final de junho e o início de julho e formou uma espécie de cúpula de calor, elevando as temperaturas nos dois países como nunca antes.
Na Colúmbia Britânica, no Canadá, foi registrado uma máxima histórica de 49,6ºC, mais de quatro pontos acima do recorde nacional de 45ºC.
Em Portland, Oregon — um Estado conhecido por seu clima chuvoso —, também houve máximas recordes por três dias consecutivos: 46,1ºC, 44,4ºC e 42ºC. Os incêndios florestais nesse Estado queimaram quase 150 mil hectares, exigindo que milhares de pessoas deixassem suas casas.
Mas embora as temperaturas máximas tenham capturado a atenção dos especialistas, na faixa das temperaturas mínimas também ocorreram alterações.
Onda de calor nos EUA e Canadá é evento 'único em 1000' anos, segundo a rede World Weather Attribution
Reuters
De acordo com dados do órgão americano National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA), apenas na última semana de junho, os recordes de temperatura máxima foram quebrados 1.328 vezes nos Estados Unidos.
Este valor se refere às medições diárias registradas por cada uma das estações espalhadas pelo país.
Por outro lado, nas temperaturas mínimas, os recordes foram quebrados 1.602 vezes.
"Há uma tendência global em que as temperaturas noturnas estão aumentando mais rapidamente do que as temperaturas diurnas", diz um grupo de cientistas do Instituto de Sustentabilidade e Meio Ambiente da Universidade de Exeter, na Inglaterra.
Foi algo sobre o que o relatório Climate Science Special Report também alertou em 2018 ao afirmar que as temperaturas mínimas médias estavam aumentando "a uma taxa ligeiramente superior às temperaturas máximas médias", um padrão que vinha sendo observado em diferentes partes do planeta.
Na verdade, temperaturas mínimas excepcionalmente mais altas estão se tornando cada vez mais comuns nos Estados Unidos, de acordo com dados do NOAA.
Por que as temperaturas sobem à noite?
Daniel Cox, do Instituto de Sustentabilidade e Meio Ambiente, explica por que as temperaturas noturnas mudam em um ritmo diferente das temperaturas diurnas.
Ele e uma equipe de cientistas analisaram as temperaturas máximas e mínimas por dia e hora entre 1983 e 2017, com dados fornecidos pela NOAA.
"A exploração da variação das temperaturas tem se concentrado principalmente nas médias diárias, mensais ou anuais. Surpreendentemente, pouca atenção tem sido dada à variação ao longo do ciclo diário", diz o estudo, publicado na revista Global Change Biology.
Os pesquisadores descobriram que 54% da superfície da Terra experimentou alguma assimetria de aquecimento superior a 0,25°C entre o dia e a noite.
"Os aumentos do dióxido de carbônico atmosférico e de outros gases de efeito estufa estão elevando as temperaturas máximas e mínimas com maior tendência à noite. Mas as formas com que essas mudanças ocorrem variam dependendo do local e do horário."
Os cientistas também descobriram que um aumento maior nas temperaturas noturnas estava relacionado à umidade e à geração de nuvens.
"Observamos que, nas regiões onde havia aumento de nuvens, a temperatura noturna subia mais rápido do que a diurna. Já o aumento da temperatura diurna estava mas presente em regiões mais secas", explica Cox.
Isso acontece porque as nuvens agem como "um cobertor", empurrando o calor para baixo e fixando-o à superfície da Terra.
Já nas áreas sem nuvens, o clima fica mais seco e quente durante os dias, mas a temperatura diminui à medida que o calor se dissipa.
Para Cox, ondas de calor tão extremas como as vistas na América do Norte são eventos muito específicos que precisam ser estudados com mais detalhes — como parâmetro, ele e sua equipe analisaram dados correspondentes a 35 anos.
"Conforme os níveis de gases do efeito estufa aumentam na atmosfera, eventos extremos se tornam cada vez mais comuns. Mas as temperaturas não aumentam de forma linear."
Temperaturas mais altas à noite podem ter implicações diretas no meio ambiente, como na fotossíntese das plantas, e claro, podem igualmente afetar as pessoas: se a Terra não consegue esfriar de forma suficiente, nosso corpo tampouco, especialmente em meio a picos de calor. Isso pode levar a tonturas, náuseas, desmaios e suor; e em casos mais graves, à insolação.
Entendendo as mudanças climáticas
Enchentes na Alemanha e na Bélgica são pistas de que mudanças climáticas estão se fazendo sentir mais cedo do que o esperado
EPA
O planeta ficou cerca de 1,2ºC mais quente após o início da era industrial. Desde que há registros, 2016 foi o ano mais quente da história, seguido de 2020.
Se as projeções de aquecimento continuarem, o planeta poderá chegar ao patamar de 1,5ºC de aquecimento entre 2030 e 2052, de acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
Há décadas, cientistas têm tentado prever como as mudanças climáticas podem afetar o planeta na prática.
Mas eventos tão extremos como a cúpula de calor na América do Norte e enchentes inesperadas na Alemanha e na Bélgica estão levando os especialistas a acreditar que as projeções estão aquém e que as consequências das mudanças climáticas estão se fazendo sentir mais cedo do que o esperado.
No entanto, se há soluções, Cox acredita que o monitoramento das variações de temperatura de hora em hora pode ajudar nelas.
"Ao considerar o ciclo diário, podemos avaliar com mais precisão a mudança climática e a ameaça que ela representa", diz o cientista.
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