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Gravação inédita de 1962 joga luz sobre o artista, morto em 1973, e mostra que o intérprete era mais vocacionado para propagar a sofrência do repertório da era do rádio. Capa do álbum 'Agostinho dos Santos en Uruguay'DivulgaçãoResenha de álbumTítulo: Agostinho dos Santos en UruguayArtista: Agostinho dos SantosEdição: DiscobertasCotação: * * * *? Assim como Marília Mendonça (1995 – 2021), o cantor paulistano Agostinho dos Santos (25 de abril de 1932 – 11 de julho de 1973) teve a voz calada precocemente em desastre de avião quando, há 48 anos, o Boeing 007 de prefixo PP-VJZ, da Varig, pegou fogo minutos antes de pousar no aeroporto de Orly, em Paris. O cantor tinha 41 anos. Diferentemente da estrela sertaneja, cuja trajetória artística foi interrompida no auge, o artista já tinha vivido o pico de popularidade ao longo dos anos 1950, década áurea da carreira deste cantor da era do rádio cujo repertório transitava basicamente entre o samba-canção, o bolero e o cancioneiro da bossa nova. Com a afinada voz de veludo, preponderante até a primeira metade dos anos 1960, Agostinho dos Santos foi grande cantor que extrapolou as fronteiras do Brasil, tendo inspirado sucessores do porte de Emilio Santiago (1946 – 2013) e Milton Nascimento. Tal influência é ressaltada pelo produtor Thiago Marques Luiz em texto escrito para o encarte da edição em CD do inédito álbum Agostinho dos Santos en Uruguay. Lançado pelo selo Discobertas nesta segunda quinzena de novembro de 2021, por ora somente em CD, o álbum eterniza onze números de apresentação feita pelo cantor brasileiro em 1962 no auditório da Rádio Monte Carlo, emissora de Montevidéu, capital do Uruguai, reproduzindo ao fim do disco a entrevista dada por Agostinho (e pelos músicos do show) a locutor da emissora. Editado graças à digitalização, restauração e masterização por Anderson Caserini de fita de rolo com a gravação inédita, encontrada quando Thiago Marques Luiz vasculhava o próprio acervo para fornecer material para documentário sobre Agostinho dos Santos feito sob direção de Ney Inácio, o disco Agostinho dos Santos en Uruguay flagra o cantor em ação com o trio comandado pelo pianista paulistano Pedrinho Mattar (1936 – 2007) e que, além do líder, era formado pelo baterista Rubinho Barsotti (1932 – 2020) – integrante da formação original do Zimbo Trio – e pelo baixista Manuel Luís Viana, conhecido como Chu Viana. O trio era hábil no toque da bossa nova, estilo de música ao qual Agostinho dos Santos ficou associado por ter sido o intérprete original de Manhã de Carnaval (Luiz Bonfá e Antonio Maria, 1959) e A felicidade (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1959), composições gravadas para a trilha sonora original do filme francês Orfeu negro (1959). Além de terem dado visibilidade planetária ao cantor, os dois registros fizeram com que Agostinho dos Santos fosse convidado para o elenco do lendário show do Carnegie Hall que apresentou a Bossa Nova aos Estados Unidos naquele ano de 1962. A propósito, o roteiro seguido por Agostinho na apresentação no auditório da rádio uruguaia foi similar ao cantado pelo artista no célebre palco de Nova York. Manhã de Carnaval abre o disco Agostinho dos Santos en Uruguay com atmosfera de samba-canção, deixando claro que a adesão do cantor à bossa nova foi quase acidental. A praia do cantor era outra, ainda que Agostinho tenha caído com leveza no suingue de Céu e mar, samba harmonicamente arrojado, composto em 1953 por Johnny Alf (1929 – 2010), gravado originalmente pelo autor em 1958 em obscuro disco de 78 rotações e apresentado por Agostinho como novidade (“primeira audição”, nas palavras dirigidas pelo artista aos ouvintes uruguaios). Agostinho dos Santos canta 'Balada triste' e 'A noite do meu bem' no disco que eterniza show feito no UruguaiReprodução / Capa de discoA rigor, Agostinho dos Santos era intérprete mais vocacionado para ecoar o melodrama de Balada triste (Douglas Vogeler e Esdras Pereira da Silva, 1958), composição que apresentou ao Brasil simultaneamente com Angela Maria (1929 – 2018). A impostação com que dá voz à delicada canção A noite do meu bem (Dolores Duran, 1958) exemplifica o tom primordial do canto de Agostinho dos Santos – sem demérito para o artista – e justifica a inclusão no roteiro do show da dramática Balada do homem sem Deus, música lançada e assinada em 1959 por Agostinho, compositor bissexto, em parceria com Fernando César (1917 – 1983), autor de vários sambas-canção populares nos anos 1950. Contudo, a visibilidade internacional alcançada pelo cantor por conta das gravações do já mencionado filme Orfeu negro ligou para sempre o nome de Agostinho dos Santos à bossa nova. É por isso que sambas como A felicidade – de versos inicialmente recitados pelo cantor na apresentação no Uruguai – e O amor em paz (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1960) figuram no roteiro. Aliás e a propósito, Agostinho dos Santos foi o intérprete original de O amor em paz, mas a música passou sintomaticamente despercebida e somente seria notada quando João Gilberto (1931 – 2019) a gravou em 1961 no terceiro álbum do criador da bossa. É que, cabe enfatizar, Agostinho dos Santos era intérprete mais talhado para propagar o sofrimento das canções de amor sem paz, dos boleros e dos samba-canção da fase pré-Bossa Nova. Meu castigo (Onildo Almeida, 1958) exemplifica no disco a sofrência recorrente no canto do artista. Agostinho dos Santos carregava na voz a alma sentimental brasileira e, inclusive por esse dom, merece ser retirado do ostracismo. Disco viabilizado pelo produtor Thiago Marques Luiz em parceria com o pesquisador musical Marcelo Fróes, diretor do selo Discobertas que já lançou em 2014 duas caixas com reedições em CD de oito álbuns gravados pelo cantor entre 1958 e 1961, Agostinho dos Santos in Uruguay é o primeiro movimento para reavivar a memória do grande cantor que entrou em cena no rádio, em 1951, e que poderia estar festejando 70 anos de carreira em 2021 se não tivesse pegado o trágico voo Rio-Paris de 1973.