Alceu Valença atende o telefone e, antes que o repórter diga uma só palavra, começa a declamar ligeiro os versos de uma canção. “O tempo se dilata como um fio, cordão, elástico, caminho, estrada que nos transporta. A gente segue o tempo e ninguém nota seus caminhos, suas rotas por onde o tempo seguiu.” Ele faz uma pausa, como para pegar o pouco de fôlego que lhe falta para terminar a saudação, e completa: “Depois quer viver tudo que viu, vai bater na mesma porta de onde um dia saiu”. Alceu evoca “Samba do Tempo” para começar a entrevista bem à sua maneira.
Ele está entusiasmado, afinal de contas o lançamento de “Valencianas II”, segunda etapa do projeto que desloca a obra do pernambucano para o caminho clássico com a Orquestra Ouro Preto, que tem o maestro Rodrigo Toffolo como regente titular e diretor artístico, se avizinha. Nesta sexta-feira (26), o disco chega às plataformas digitais.
No domingo (28), às 18h, Alceu e Orquestra realizam um concerto gratuito no Rio de Janeiro, nas areias da praia de Copacabana. Em Belo Horizonte, a previsão é que eles sempre apresentem no ano que vem. Para falar deste novo álbum, façamos um breve e justo exercício de memória.
A ideia de unir Alceu Valença e Orquestra Ouro Preto deve ser atribuída a Paulo Rogério Lage, produtor, cenógrafo e diretor de palco de “Valencianas II”. A história, porém, começa nos anos 1980, em Recife, mais especificamente no edifício Selva, na praia de Boa Viagem. Lage e a mãe de Alceu eram vizinhos, e foi ali que ele e o compositor se conheceram. O cenógrafo voltou para Minas Gerais tempos depois. Morando em Ouro Preto, conheceu a Orquestra, formada em 2001.
Naquela década, Lage insistia que o amigo e o grupo trabalhassem juntos para, de forma inédita até então, dar contornos orquestrais à obra do pernambucano, que recorda: “Ele falava sempre da Orquestra Ouro Preto para mim. Um dia, ele pegou o Mateus, o Toffolo, e foi para Olinda. Tudo começa em Olinda. Lá, discutimos e escolhemos repertório”, observa Alceu, que gostou “dos meninos” logo de cara: “Se fosse diferente não tinha parceria. Tudo na minha vida e na minha carreira acontece de forma natural, ninguém me impõe nada. Só faço parcerias com quem eu gosto e com quem eu quero”.
A primeira edição do espetáculo “Valencianas” ocorreu em 2010 para celebrar os 40 anos de carreira de Alceu; quatro anos mais tarde, a gravação do CD e do DVD “Valencianas: Alceu Valença e Orquestra Ouro Preto” reforçou ainda mais a parceria. Agora, “Valencianas II”, cujo repertório reúne joias como “Táxi Lunar”, esta feita em parceria com Geraldo Azevedo e Zé Ramalho, “Solidão”, “Pelas Ruas que Andei”, “Como Dois Animais”, “Na Primeira Manhã”, “Papagaio do Futuro” e “Tesoura do Desejo”, chega para adicionar mais um capítulo à história que cola Ouro Preto à São Bento de Una, cidade entre o sertão e o agreste pernambucano que viu nascer Alceu Paiva Valença.
Com arranjos de Mateus Freire, “Valencianas II” é esse encontro entre duas paisagens unidas pela versatilidade presente na obra de Alceu e na essência da companhia mineira. Os elementos da música nordestina estão ali, dialogando com o fado, com a bossa e com a afro-brasilidade, tudo isso adaptado à linguagem de música de concerto. “O fado está presente no HD da minha memória. Quando estou cantando "Borboleta", o início dela é uma cantiga de criança, meio lusitana. É o reflexo da minha infância. "P da Paixão" foi composta entre Porto Alegre e Porto, está próxima do fado. Quando falo em "Samba do Tempo", vejo reflexos dos meus tios tocando”, relembra Alceu.
O concerto, que agora sai em disco, foi gravado em janeiro de 2020, na Casa da Música, na cidade do Porto, em Portugal. Foi uma noite maravilhosa, um presente, Alceu Valença ainda se lembra: “Estar no palco com a Orquestra Ouro Preto é algo maravilhoso, divino. É como se fosse o Éden. Adoro a Orquestra, todo mundo ali é amigo da arte”.
Para o maestro Rodrigo Toffolo, dividir o palco com o compositor nordestino é “uma honra que não sei se merecemos e um processo de eterna aprendizagem”. “O Alceu tem essa capacidade, como poucos músicos têm, de conhecer, reconhecer e reproduzir um Brasil profundo, um Brasil das nossas raízes. Só tenho que agradecer a oportunidade que me foi dada de estar com alguém que respira a música brasileira, que acompanhou desde São Bento do Una os primeiros aboios, toda essa fervura da nossa música regional”, reforça Toffolo.
Domingo, 18h
A estreia de “Valencianas II” foi adiada pela pandemia. Alceu Valença fez tantas coisas de 2020 para cá que a ansiedade pelo lançamento do projeto nem se aproximou. Só no ano passado, três discos - “Sem Pensar no Amanhã”, “Saudade” e “Senhora Estrada” - do cantor chegaram às plataformas digitais com releituras e um par de canções inéditas (as que dão título aos álbuns) no formato voz e violão, algo que Alceu experimentou pela primeira vez em 50 anos de carreira. A quarta novidade pandêmica foi “Alceu Valença e Paulo Rafael”, um belo tributo ao parceiro, amigo e guitarrista falecido em agosto de 2021, aos 66 anos.
Há um mês, o compositor rodou a Europa em uma turnê que passou por Portugal, Alemanha, Irlanda, Inglaterra, Espanha, Suíça e Holanda. Alceu adora estar na estrada. “Gosto de tudo, rapaz, gosto de cantar. Palco, para mim, é vitamina”, define. Antes de se juntar à Orquestra Ouro Preto nas areias de Copacabana, ele faz shows em Belém e Brasília, na sexta e no sábado.
No domingo, chega ao Rio para o concerto-lançamento de “Valencianas II”. Alceu não tem dúvidas de que será uma noite tão linda quanto aquela de janeiro de 2020, no Porto. Na cabeça de poeta, Alceu projeta o futuro: “Tenho uma coisa filosofal na minha cabeça o tempo todo. Já estou olhando para a Orquestra todinha. Conheço todo mundo pela cara. Que seja uma noite maravilhosa. E assim será”.
O TEMPO