Medo, angústia, descaso e impotência são alguns dos sentimentos relatados pelos moradores de Ouro Preto que vivem em áreas consideradas de risco e alto risco na cidade. Um levantamento do Serviço Geológico do Brasil mostra que o município – localizado na Região Central de Minas Gerais – tem o maior número de áreas de risco do país. São 313, sendo que pelo menos 97% delas estão no patamar de risco geológico alto e 2,8%, muito alto. Ao todo, 6.486 pessoas são afetadas pelo problema. Na cidade histórica, a população ocupa os espaços entre as montanhas e o Parque do Itacolomi desde a época do Ciclo do Ouro. Muitas construções são irregulares, erguidas nas encostas. Além das moradias irregulares, essas áreas colocam em risco também o patrimônio histórico e cultural do município. Um deslizamento de terra no Morro da Forca, localizado no Centro Histórico, destruiu dois casarões que ficavam na Rua Doutor Pacífico Homem, em janeiro do ano passado. Ontem, o local foi interditado por risco de novos deslizamentos. Em outro ponto do Centro Histórico, na Rua Padre Rolim, em frente ao casarão de nº 455, é possível ver um princípio de deslizamento de encosta. Sacos de areia fazem a contenção no local.
SILÊNCIO E MEDO Moradores e funcionários de estabelecimentos próximos ao Morro da Forca evitam se manifestar sobre a situação do local. Uma funcionária – que preferiu não se identificar – disse que todos sentem medo de viver e trabalhar ali perto, mas estão saturados do assunto. Já nos bairros da periferia, os moradores contam que o medo é constante. “Mas não tem outra opção, temos que ficar”, diz uma residente do Bairro Piedade. Quando chega o período chuvoso, eles dizem que o que resta é rezar para que uma nova tragédia não aconteça. “Qualquer barulho já é motivo de preocupação”, afirma outro. Vários relatam que muitos moradores do bairro vizinho, Taquaral, foram morar ali depois que as chuvas do ano passado deixaram vários desabrigados. Segundo eles, a prefeitura pagava um aluguel social, mas após um tempo a maioria retornou para as casas, sem perspectiva de uma solução definitiva para o problema. Cláudia Rodrigues, autônoma, de 54 anos, conta que mora no local praticamente a vida inteira e já viu muitas tragédias por causa das chuvas. “Sempre que a Defesa Civil é acionada ela vem, mas poderiam fazer alguma coisa antes. Infelizmente, eles esperam acontecer a tragédia.” Ela aponta para um local e diz que ali tem uma mina de água e que o muro já caiu várias vezes. “A gente chama, eles vêm, dizem que tem projeto, mas nunca saiu do papel. É muito descaso”, lamenta. A moradora lembra um deslizamento que provocou a morte de duas famílias no bairro, anos atrás. “Foi de madrugada. Nós só escutamos o barulho, os vizinhos começaram a gritar. Todo mundo foi até lá para tentar salvar alguém e só se salvou uma menina. As outras duas famílias morreram”, recorda-se. Foi o aposentado José Gomes, de 79, um dos primeiros moradores do bairro, quem chegou ao local para socorrer as vítimas. “Quando eu cheguei não vi nada, as casas estavam soterradas. Os bombeiros tiraram muita terra daqui.” Ele conta que se mudou para o bairro em 1970 e o cenário era bem diferente do atual. “Tinha poucas casas e as pessoas foram ocupando.” Gomes reforça que todos os moradores têm medo de que novos deslizamentos aconteçam. Ele mostra o local onde a terra desceu e matou duas famílias. “Não me lembro a data certa, mas o deslizamento atingiu duas casas e matou nove pessoas. Só se salvou uma moça, que hoje mora perto da minha casa.” O aposentado destaca que no local foram plantadas árvores e não se pode mais construir nada no terreno.
DESLIZAMENTOS DE TERRA No bairro vizinho, o Taquaral, a situação é ainda pior. Parte do asfalto de algumas ruas cedeu e deslizamentos de terra interditaram casas. Já em outras, é possível ver rachaduras enormes e algumas foram simplesmente abandonadas. A parte mais alta do bairro tem ares de cidade-fantasma. O frentista Geraldo Márcio, de 56, é morador do bairro há três anos e conta que no período chuvoso do ano passado muitas famílias perderam casas na localidade por desmoronamentos. “Nós mesmo saímos e acabamos voltando.” Segundo ele, a casa não foi afetada, mas o medo fez com que a família deixasse o local. “Diziam que tinha terra lá pra cima que podia descer”, afirma, ao apontar para uma encosta que fica acima das casas. O homem diz que o medo continua este ano, em razão da chuva forte e contínua na cidade. “Dormimos com medo. Olha como está aí”, mostra apontando para a Rua Águas Férreas, cujo asfalto cedeu. “Está assim desde o ano passado. A prefeitura veio e começou a mexer lá na frente”, afirma. No início da rua há uma contenção que cerca o deslizamento de terra que atingiu três casas.A aposentada Angela Marciano, de 59, é uma das poucas moradoras que continuam na rua. Ela mora sozinha no local há 40 anos. “Gosto muito de morar aqui, apesar dos problemas. Lutei tanto para construir esse barraco, trabalhava dia e noite”, relembra. Angela já precisou deixar a residência cinco vezes por causa de problemas decorrentes de chuvas. “Pode contar os colégios que eu já não fiquei aqui em Ouro Preto. Acho que só em três, o resto já fiquei em todos”, diz a moradora, se referindo aos locais que servem de abrigo. “É muito ruim, eles destroem as coisas da gente, que já não temos quase nada. Na chuva do ano passado tive que sair, fiquei uns três meses na casa de parentes”, lamenta. Durante a época de chuvas, ela diz que se preocupa, mas não tem medo. “Tenho Deus e minha Nossa Senhora está protegendo essa casa”, e aponta para a imagem na estante da sala. Na rua, apenas duas famílias permanecem nas casas, além dela. “O resto todo mundo saiu, já tem mais de um ano. Elas (casas) estão todas condenadas.” Perguntada sobre como é viver nesta situação, ela se mostra sem esperanças. “Não precisa esperar nada da prefeitura, só Deus. A Defesa Civil sempre vem aqui e a assistência social às vezes vem. Eles olham, vão embora, somem, depois voltam de novo.” A aposentada diz que não compensa sair da casa em que mora para receber o aluguel social, pago pela prefeitura. “O aluguel é mais de R$ 1 mil. A prefeitura dá R$ 700, eu vou pagar o aluguel com esse dinheiro, mas ainda tem a luz, água, gás, alimentação para pagar. Então, eu fico na minha casa mesmo, que não pago aluguel”, afirma.
POSTES INCLINADOS Algumas ruas acima vive a também aposentada Maria Helena da Rocha, moradora do bairro há 42 anos. Parte da rua da casa dela também deslizou, o muro ao lado caiu e os postes da rua da frente estão inclinados. Apesar dos riscos, ela diz que a Defesa Civil fez inspeção em sua casa e concluiu que as trincas são fruto de dilatação do imóvel. O órgão, no entanto, classificou a área como de alto risco, segundo ela. “Minha casa se salvou por um milagre. É tenso morar aqui, olha os postes como estão. Não dá pra ficar na tranquilidade.” Preocupação e angústia são sentimentos que a acompanham nesta época do ano. “Eu durmo pela misericórdia de Deus e pela fé. Hoje choveu a noite inteira.” A aposentada diz que tem noites em que acorda e vai para fora ver como está a situação. “A Defesa Civil disse para ficarmos atentos”, ressalta. Ano passado, ela precisou sair de casa devido aos riscos de deslizamentos. “Essa foi a pior chuva que teve aqui. Fiquei um tempo na casa de parentes, mas depois a Defesa Civil falou que a gente podia voltar.” A aposentada afirma que se a prefeitura oferecesse um outro local, aceitaria se mudar. “Alguma coisa tem que ser feita porque do jeito que está aqui não dá pra ficar não. Isso é situação de um ser humano viver?”, questiona. Ela relata ainda que as casas abandonadas trouxeram outro problema para o bairro: a insegurança. "À noite, sentimos um clima diferente, com usuários de drogas. Eles aproveitam os lugares vazios”, explica. Maria Helena conta que antes a polícia fazia rondas frequentes, mas depois que o asfalto cedeu não tem como os veículos acessarem o local.
MONITORAMENTO Em nota, a Prefeitura de Ouro Preto afirma que o município “tem um terreno bastante peculiar, o qual apresenta muitas áreas de risco geológico. Com a ocupação desordenada de expansão da cidade desde a metade do século passado, aliada às chuvas características da região, muitas famílias atualmente vivem em áreas de risco”. A administração atual diz que tenta minimizar os riscos e retirar as famílias das áreas mais críticas. No período pré-chuvoso, foi feito um mapeamento das áreas de risco e da população que ali vive. As famílias em áreas de alto risco foram desabrigadas e encaminhadas para o aluguel social. Ainda de acordo com a prefeitura, atualmente, são 178 famílias atendidas mensalmente, com investimento de R$ 125 mil mensais. “Além disso, foram decretados de utilidade pública 30 hectares das terras da antiga Novelis e 40 hectares da antiga Febem com o objetivo de criar habitações seguras para famílias que atualmente vivem em áreas de risco, além do início do projeto de reurbanização do Bairro Taquaral (bastante atingido em 2022) para implantar obras de redução de riscos de desastres e titulação de imóveis em áreas seguras.” A prefeitura conta ainda com a contratação de crédito de R$ 16 milhões para investimento em moradia para os atingidos pelas chuvas de 2021 e janeiro de 2022. O processo está em avaliação no Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG). O secretário municipal de Defesa Social de Ouro Preto, Juscelino Gonçalves, frisa que a Defesa Civil Municipal tem implementado e acrescentado recursos humanos e materiais ao seu contingente. Ele afirma que as autoridades estão acompanhando a situação da cidade, em virtude do alerta de grande volume de chuvas para os próximos dias. Um comitê gestor de risco foi criado pelo Executivo. “Nós ainda não chegamos no alerta vermelho. Estamos em alerta laranja, que é um alerta moderado”, diz.Repleta de casarões históricos, Ouro Preto também convive com o problema de qualquer deslizamento colocar em risco também esses imóveis. Sobre esse cuidado com o patrimônio histórico em virtude das chuvas, a Secretaria de Cultura do município informa que vários imóveis nesse perfil já foram ou estão sendo recuperados, como a Casa de Pedra de Amarantina, Capela Velório e a Praça de Santo Antônio do Salto, Parque das Cavalhadas de Amarantina, obras do Teatro Municipal Casa da Ópera e do Casarão Rocha Lagoa. Em Minas, 600 mil pessoas vivem em lugares inapropriados Clara Mariz, Nívia Machado * e Maicon Costa *Especial para o EM
Minas Gerais tem 2.600 áreas em risco geológico em decorrência do período chuvoso. Dados do Serviço Geológico apontam que, desses locais, 602 estão em situação de risco extremo e quase 600 mil pessoas vivem em lugares inapropriados. Além disso, a cidade de Ouro Preto, na Região Central, é o município com mais pessoas e moradias em situação de risco geológico, com 33 locais que enfrentam problemas como deslizamentos, inundações e erosões. De acordo com o Serviço Geológico do Brasil (CPRM) em Minas Gerais, 195 municípios apresentam risco geológico. Isso faz com que Minas seja o segundo estado do Brasil com maior incidência de ocorrências do tipo, perdendo somente para Santa Catarina, que tem 294 cidades nessa situação. Os dados são de 22 de dezembro de 2022. Os riscos apresentados no levantamento se dividem em deslizamento (75,34%), inundação (15,49%), erosão (3,22%) e outros (5,95%). Logo após Ouro Preto vem Ipatinga, com 99 áreas de risco; Juiz de Fora, com 80; Santa Luzia, com 75; e Muriaé, com 54. Em Antônio Dias, onde quatro pessoas morreram soterradas após um deslizamento de terra em 25 de dezembro último, o sistema contabilizava 45 locais de perigo em sua última atualização. Em entrevista ao Estado de Minas, o chefe da Divisão de Geologia Aplicada do Serviço Geológico do Brasil (CPRM), Tiago Antonelli, explicou que o relevo acidentado de Minas Gerais, com muitas montanhas, morros e serras, além de ocupações em áreas impróprias para habitação, funciona como facilitador para deslizamentos de terra e inundações. “Esse conjunto de um relevo acidentado, a ocupação de áreas impróprias para habitação, como encostas, lugares próximos a planícies de inundação, fazem com que o estado de Minas Gerais, sofra bastante em épocas de chuva”, diz. CHUVAS Em Ouro Preto, a situação tende a piorar com o risco de deslizamentos de terra e inundações, de acordo com o alerta da Defesa Civil municipal de que haverá chuvas de 100 a 200 milímetros (mm) acumulados até hoje. Nos próximos sete dias, o índice pode chegar a 300 milímetros de chuva.Até sexta-feira (6/1) já choveu 30% do esperado para o mês todo – a média histórica de chuvas para janeiro é de 330 milímetros. Em dezembro de 2022, choveu 300 milímetros, que corresponde a 94% da média esperada para o mês. Ao comparar com dezembro de 2021, o índice de chuvas chegou a 380 milímetros e ultrapassou em 20% a média esperada para o mês. Em janeiro de 2022, o volume de chuva foi de 425 milímetros, 30% superior à média esperada para todo o mês. Devido ao acúmulo dos dois meses, vários escorregamentos de solo aconteceram, um deles no Morro da Forca, que soterrou o casarão histórico Solar Baeta Neves.
PREVENÇÃO Questionada sobre como tem atuado no apoio a municípios com áreas de risco geológico, a Defesa Civil de Minas afirmou que realiza a capacitação, atualização e nivelamento dos agentes regionais. Além disso, o órgão disse que tem articulação com outras entidades para organizar as ações de resposta e restabelecimento à normalidade, distribuição de material de ajuda humanitária e envio de equipe de resposta para auxiliar o município quando necessário. Segundo o chefe da divisão de geologia aplicada da CPRM, Tiago Antonelli, para minimizar os estragos do período chuvoso os municípios devem utilizar mapeamentos de riscos geológicos e, a partir daí, fazer obras de mitigação para minimizar os riscos, ou, em última instância, retirar pessoas de locais impróprios para habitação. “A longo prazo, é preciso minimizar ocupações irregulares, aumentar o número de insumos voltados à prevenção de desastres. E uma vez que os municípios têm conhecimento do problema, que ajam para resolvê-lo”, concluiu Antonelli.