A taxa de sobrevida dos casos de risco iminente de morte no João XXIII fica em torno de 35%, informa o cardiologista Winston Khouri, hematologista da Agência Transfusional e há 37 anos no hospital. O percentual é bem maior do que o apresentado em grandes hospitais de trauma do mundo, com taxa de sobrevida em torno de 20% para pacientes em risco extremo. Quando alguém nessas condições dá entrada, um sinal de alerta disparado ao longo de um corredor, que fica livre para o atendimento, já deixa a equipe preparada.
Referência para outros hospitais brasileiros, a “Onda Vermelha” teve Winston Khouri entre os idealizadores. Com a voz calma e semblante tranquilo, ele diz que para trabalhar num pronto-socorro é preciso, acima de tudo, “gostar de emergência”. Ao lembrar de episódios históricos nas últimas quatro décadas, a exemplo do desastre de Brumadinho, o médico afirma que, como há um sistema de emergência em prontidão, não há atropelos.
O que seria, então, mais desafiador para os especialistas? Em primeiro lugar, houve períodos como o da Aids (no início da década de 1980), da gripe H1N1 (2009) e da COVID-19, a partir de 2020. Outra resposta vem rapidamente e tem o sinônimo de “autoritarismo”. Certa vez, um político ligou para a direção do hospital “ordenando” que a secretária fosse atendida imediatamente, e que passasse na frente de todos. Mesmo acostumada com a emergência, a equipe ficou aturdida diante da postura do figurão. O triste desfecho foi que a paciente já chegou morta ao hospital, recorda-se Khouri.
Mesmo com toda preparação, os médicos ainda enfrentam questões que, num momento de urgência, podem causar atrasos e estresse, a exemplo de pacientes de uma religião que não aceitam transfusão de sangue. “Além de médicos, somos detetives. Precisamos questionar o tempo todo quando não temos as respostas necessárias e fundamentais para salvar uma vida.”
COLUNA DORSAL
Mostrando o corredor da “Onda Vermelha”, considerada o eixo da urgência ou quase uma coluna vertebral do serviço de emergência no pronto-socorro, o administrador hospitalar Wanderlei Ramalho, há 35 anos na Fhemig, dos quais 32 no João XXIII, compara o complexo hospitalar a uma cidade com quase 4 mil pessoas trabalhando. “Aqui existe muita dedicação e pessoal especializado, daí ser referência em traumas, queimaduras e toxicologia. No caso de queimaduras, há expertise reconhecida internacionalmente”.Ramalho recorda-se de momentos críticos na história da instituição, a exemplo do incêndio no Canecão Mineiro, em Belo Horizonte, uma casa de espetáculo que pegou fogo em 24 de novembro de 2001, quando sete pessoas morreram e 197 ficaram feridas. “Temos uma estrutura montada, tudo é esquematizado, organizado, incluindo um heliponto para chegada de vítimas em helicóptero. As equipes têm cirurgiões especialistas (neurologia, vascular, ortopedia) preparados o tempo todo para salvar vidas.”
Na Unidade de Tratamento de Queimados, enquanto a equipe cuida de dos pacientes, a cirurgiã plástica Kelly Danielle de Araújo faz um alerta: muitas pessoas estão se acidentando ao usar álcool e até gasolina para cozinhar, devido ao custo do gás de cozinha. Também os churrascos, na hora de acender o fogo, entram na lista de riscos, devido à falta de cuidados e adequações no preparo.
A cirurgiã plástica, que é vice-presidente da Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ), chama a atenção também para os acidentes provocados pela rede elétrica. Um exemplo: ao fazer “puxadinhos” em suas moradias ou construir casas sem acompanhamento técnico, as pessoas esbarram na fiação com sérias consequências. Por isso mesmo, a SBQ vai lançar a campanha Junho Laranja, destacando os perigos para a população.
A Unidade de Queimados do João XXIII recebeu, em 2017, vítimas do incêndio em uma creche em Janaúba, no Norte de Minas, queimada pelo segurança do local. Na tragédia que comoveu o país, morreram oito crianças e a professora Heley de Abreu Silva Batista, com dezenas de feridos que precisaram de tratamento. Já em 2019, os pacientes foram vítimas da explosão em uma embarcação no Rio Juruá, ocorrida em Cruzeiro do Sul, no Acre. As pessoas, em sua maioria, tiveram entre 60% e 80% da superfície corporal queimada, além de lesões de vias aéreas.
Histórias de quem vive para cuidar
Na pequena capela no Hospital João XXIII, a profissional de enfermagem Lourdes Aparecida Martins, do CTI, chega às lágrimas. Perto de completar 42 anos de trabalho no HPS, ela conta que, ao chegar de São Domingos do Prata, na Região Central do estado, conseguiu emprego na área de serviços gerais. “Tinha 19 anos e pavor de ver sangue, mas, para ajudar a família, aceitei o emprego”, recorda-se.E lá se vão quatro décadas na mesma instituição. “Tenho que agradecer a muita gente, mas, de forma especial, a Zaita Parreiras, Irani Barbosa e Maria José Rinco, que me ensinaram muito. A menina assustada que eu era acabou se acostumando com a dinâmica do hospital”, revela.
Ao falar sobre o grande número de pessoas atendidas em meio século, Lourdes não contém as lágrimas. “Acredito em milagres, e aqui já vi muitos. Lembro de um trabalhador do meio rural que foi ‘engolido’ por um triturador de capim. Perdeu as pernas, mas acredita que ele, todos os dias, mantinha o bom humor, conversava com as pessoas, contava piadas?”, diz Lourdes, sobre a capacidade de superação do paciente.
Ela também se recorda de um paciente que foi hospitalizado, cujos pés foram amputados. “E, mesmo assim, dirigia carro, viajava, levava uma vida normal”, destaca a profissional de enfermagem, que é casada, tem quatro filhos e cinco netos.
FAMÍLIA
Técnica de enfermagem do pronto-socorro Maria Cláudia dos Santos, de 71, orgulha-se dos 44 anos no João XXIII. Natural do Serro, no Vale do Jequitinhonha, e homenageada no cinquentenário do hospital, ela está certa de que, com o tempo, formou uma família – além do filho de 39 anos e de mais três que criou, e dos netos, as gêmeas de 19 anos, Emily Larissa e Evelyn Letícia, e da caçula Alice, de 9.“A base de nosso trabalho e da convivência está no amor ao próximo. Precisamos ser carinhosos com os pacientes. Se a gente se coloca no lugar deles, pode entender melhor a dor que estão sentindo. Necessitam de conforto, de atenção. Se fosse possível, todo mundo deveria passar, pelo menos um dia, no setor de politraumatizados”, observa Maria Cláudia.
Em uma volta ao ano de 1979, quando começou no João XXIII, ela diz ser do tempo das seringas eram reesterilizadas, bem diferentes do material descartável de hoje. “A evolução da ciência e da tecnologia trouxe muitos benefícios para a saúde e o trabalho, mas nada substitui o amor. Estou saindo de um câncer de mama, e mantenho a disposição.”
Pela voz dos pacientes, vem o retorno para tanta dedicação. O educador físico Paulo Jaques Soares se surpreendeu com o atendimento no hospital. “Estava sem plano de saúde, então recorri ao João XXIII para me operar de apendicite. Foi tudo rápido, cheguei às 11h de um sábado e às 14h estava na mesa de cirurgia. Fui extremamente bem atendido. Espero não precisar de nova intervenção, mas confesso que, se necessário, voltarei ao HPS. Foi realmente espetacular.”
DESASTRES
De acordo com a direção do João XXIII, o hospital é referência nacional para tratamento de vítimas de politraumas, queimaduras e intoxicações. A maioria dos pacientes chega em casos de extrema gravidade e complexidade, atendidos por especialistas no tratamento de lesões habilitados para oferecer tratamento eficaz em curto espaço de tempo. Acidentes automobilísticos, desde a fundação, representam os casos mais graves, mas, com a crescente segurança dos veículos, vítimas que antes morreriam sobrevivem, embora chegando ao pronto-socorro com lesões muito sérias.Cerca de 8 mil do total de atendidos são vítimas de acidentes de trânsito. Muitas dessas ocorrências envolvem motociclistas, o segundo lugar em atendimentos no pronto-socorro – são mais de 4 mil casos por ano, sendo que mais de 3 mil deles são de homens entre 20 e 40 anos.
Em primeiro lugar nos atendimentos estão as quedas: o Hospital João XXIII atende, em média, 15 pessoas por dia devido a quedas da própria altura, sendo que mulheres com idades entre 51 e 60 anos são a maioria nesse tipo de ocorrência.
Depoimento
Lagarta na cachoeira
“Um dia, ‘fui parar’ no João XXIII, como se diz, bem à mineira, para mostrar a gravidade do assunto. Era um domingo de verão, estava numa cachoeira quando esbarrei no mato e fui queimado por uma lagarta, que, no interior, a gente chama de “sussuarana”. O bicho sapecou minha perna e causou uma dor medonha. Ô trem que doeu! – mais até do que a picada de escorpião nos meus 18 anos. Chorando, pedi a um amigo que me levasse imediatamente ao João XXIII, já imaginando a cena no fim da tarde: dia de clássico Cruzeiro e Atlético, confusão na rua e nos prontos-socorros. Mas transcorreu tudo de forma tranquila. Na portaria, logo fui encaminhado a um médico, que me fez algumas perguntas e me pediu para apontar a lagarta num livro colorido. Mostrei (eu tinha sacrificado o bicho), e ele me acalmou, dizendo que não era do tipo mais venenoso (um homem havia morrido dias antes em função de uma queimadura). Eu me senti acolhido pela atenção e competência do profissional e da instituição.” (Gustavo Werneck)
Retaguarda segura para as vítimas de tragédias
O Hospital João XXIII teve sua pedra fundamental lançada em 1963, ano da morte do papa João XXIII (canonizado em 2014), de quem recebeu o nome. Ao abrir as portas, em 1973, herdou o papel de pronto-socorro do Hospital Maria Amélia Lins, até então a única unidade pública que atendia urgências em Belo Horizonte e região metropolitana.Em diversas tragédias históricas, o João XXIII abriu as portas para vítimas de incêndios, desabamentos e de outros desastres, como os rompimentos de barragens de mineração em Mariana, na Região Central, e Brumadinho, na Grande BH. A especialização no atendimento o tornou principal referência nos casos de traumas graves – queimaduras, envenenamentos, urgências clínicas e acidentes com múltiplas vítimas.
Hoje, o Hospital João XXIII oferece 480 leitos, divididos em terapia intensiva e enfermarias. Em 2022, foram mais de 83 mil atendimentos, que resultaram em mais de 7 mil cirurgias, 10,5 mil internações, 13,3 mil consultas especializadas e 1,3 milhão de exames realizados por cerca de 2,7 mil servidores que integram a equipe multidisciplinar da unidade.
Um time de técnicos, enfermeiros, médicos, nutricionistas, psicólogos, fisioterapeutas, assistentes sociais, fonoaudiólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, servidores administrativos e outros.
Estado de Minas