Soa estranho fazer uma visita guiada por um cemitério? A exemplo do Père-Lachaise, em Paris, e do La Recoleta, em Buenos Aires, Belo Horizonte também tem um projeto de visita guiada à mais antiga necrópole da capital: o Cemitério do Bonfim, que completou 126 anos em março. Cercado de lendas e mistérios, o Bonfim guarda muito da história e da memória da capital mineira em jazigos que são verdadeiras obras de arte. Ali estão enterradas figuras ilustres, que participaram da vida social, política e cultural da cidade. O passeio, gratuito, acontece todo último domingo do mês, sempre com um tema diferente. E amanhã (30/4), às 9h, a visita apresenta um pouco da literatura mineira e brasileira observada nas alamedas do cemitério. O conjunto de esculturas, de valor artístico inestimável, se estende por todo o cemitério e chama atenção até mesmo do visitante mais desatento. As obras dialogam com o crescimento da capital e dão pistas de como certas correntes marcam a produção artística da cidade. Primeira necrópole pública da capital, onde pobres e ricos eram enterrados lado a lado, o Bonfim, assim como Belo Horizonte, também nasceu da visão de criar uma cidade completamente planejada. “Foi o primeiro cemitério oficial da nova capital, estrategicamente planejado longe da cidade para mascarar os odores da morte”, conta Marcelina das Graças de Almeida, historiadora e professora da Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), idealizadora do projeto de visitas guiadas no Cemitério do Bonfim. A pesquisadora acompanhou a reportagem do Estado de Minas em um passeio pelo cemitério. Inaugurado às pressas com a morte de Berthe Adéle, jovem belga de 19 anos, filha de um engenheiro da comissão construtora da capital, o cemitério já nasceu laico, desvinculado da Igreja. “Um passo importante para que a capital trouxesse esse ar de modernidade, rompendo com o modelo colonial, era construir um cemitério público, fora da igreja”, relata a historiadora. O túmulo de Berthe é um dos mais singelos do cemitério, protegido por um gradil, esculpido em ferro por seu pai, em 1877. Cercado de mistério, curiosamente, brotou no local um cipreste, que hoje cobre de sombra o jazigo, onde há apenas uma cruz de madeira e uma lápide de mármore com o nome da falecida. A origem da árvore atiça a imaginação de quem frequenta o cemitério. “Ninguém sabe o motivo da sua morte, nem como essa árvore veio parar aqui”, conta Marcelina.
ARCO A visita ao Bonfim começa já no imponente arco de entrada do cemitério, cravado pelos dizeres em latim: ‘morituri mortuis’. “É um ‘memento mori’, ou seja, uma lembrança da nossa mortalidade, de que esse é o destino de todos, independentemente de classe social”, explica Marcelina. Considerado um museu a céu aberto, é bom que o visitante vá preparado, já que o passeio dura cerca de três horas e é realizado quase todo sob o sol, então é importante proteger-se: óculos, chapéu, protetor solar e sombrinha são bem-vindos. Usar calçado fechado e calça comprida ajuda na proteção contra animais peçonhentos: logo na entrada, o visitante é informado sobre a presença de escorpiões por lá. Os interessados em participar das visitas guiadas ao cemitério devem se inscrever, gratuitamente, pelo site Sympla. O agendamento é liberado 10 dias antes da data de cada visita. As vagas para a atividade são limitadas. Apesar de público, as suntuosas esculturas nos jazigos marcam as distinções sociais até mesmo na hora da morte. “Era a forma de a família mostrar seu status social, então, os túmulos precisavam se destacar", explica a historiadora. Com olhar atento, Marcelina caminha pelas quadras do cemitério elencando escultores e artistas famosos, outros nem tanto, responsáveis por talhar cuidadosamente as lápides. Divididas em 54 quadras, as obras refletem diferentes fases artísticas do Bonfim. Os primeiros túmulos foram construídos em mármore, material recorrente nas primeiras edificações de BH. A partir da década de 1930, fica evidente a exploração do bronze, para ornamentar imagens de santos, anjos e cristos crucificados. Em seguida, apareceu o granito. Um dos mausoléus mais imponentes é o de Raul Soares, ex-governador de Minas Gerais, que dá nome à praça na Região Centro-Sul de BH e ao hospital no Bairro Santa Efigênia. Rico em detalhes, o altar em bronze e granito foi esculpido pelo artista italiano Ettore Ximenes, reconhecido por suas obras tumulares com referências religiosas e mitológicas. No mausoléu estão significativas referências ao político, como a estátua da República, elementos da Justiça e outros que remetem ao amor à pátria. “É um túmulo que foi pago com dinheiro público. Quando ele morreu, em 1924, houve uma comoção geral na cidade. Ele era muito querido. Ele foi enterrado em um túmulo modesto e o governo mineiro decidiu construir uma homenagem a ele, inaugurada dois anos após sua morte”, detalha a historiadora.
DEATH METAL Mas o Bonfim abriga um túmulo em especial que atrai visitantes de todas as regiões do Brasil e até do mundo. A curiosidade não é pelo falecido, que até hoje ninguém sabe quem é, mas pelo jazigo ter sido pano de fundo para a capa do álbum de uma banda brasileira de death metal, chamada Sarcófago, primeiro grupo de metal de Belo Horizonte, formado antes mesmo do sucesso da banda Sepultura. A produção, lançada em 1987, foi polêmica na época, já que os integrantes usavam uma pintura facial, mais tarde popularizada pela banda norte-americana Kiss, e por estarem em um cemitério. Para compor a capa, eles utilizaram os dizeres I.N.R.I., sigla em latim que significa “Jesus Nazareno, o Rei”, cravada na lápide para formar o nome do disco. Na visita ao cemitério, o Estado de Minas flagrou um fã emocionado subindo no túmulo para registar sua paixão pela banda. Ele aproveitou a folga no trabalho para conhecer de perto um dos maiores ícones do grupo. “Eu curto muito a banda. Saí de Santa Luzia só para vir aqui, tinha que tirar essa foto”, celebra sorridente Richard Santos, de 20 anos. A ousadia de Richard em subir em cima do túmulo, no entanto, não deve ser tomada como exemplo. Apesar de ser um local aberto e público, que guarda um grande acervo artístico cultural, Marcelina lembra a importância do respeito à família e também à memória do falecido. “Não é permitido subir nos túmulos. Muitos o fazem na tentativa de conseguir melhores ângulos para fotos, mas nem precisamos comentar, né? Isso tudo a gente reforça no início da visita”, destaca a historiadora.
ROTEIRO ATUALIZADO O roteiro dos passeios está em constante processo de pesquisa e atualização. Além de pesquisadores e especialistas na área, a construção das visitas também conta com a parceria de personagens significativos, mas muitas vezes inviabilizados na história dos cemitérios: os coveiros. “Eu pesquiso o cemitério há muitos anos, e ainda não conheço tudo. Sempre tento descobrir mais coisas, principalmente com as pessoas que trabalham aqui. Eles me ajudam a pesquisar, se envolvem nesse processo de localizar e identificar os túmulos para construirmos um trabalho ainda mais bacana”, ressalta Marcelina. Entre as várias personalidades que repousam no Cemitério do Bonfim, o último a ser descoberto pelos coveiros foi o túmulo do célebre jornalista mineiro José Lino Souza Barros, que morreu em janeiro deste ano. A programação tem um dia dedicado à presença feminina no espaço cemiterial, porém, Marcelina ainda faz questão de incluir referências às mulheres em todas as visitas. “Nossa história é muito marcada pelo masculino, a gente fala muito de homens, então, é muito importante trazer as mulheres à cena”, enfatiza. Entre as personalidades de destaque está a artista belga Jeanne Louise Milde, que, como muitas mulheres na história, usava um pseudônimo masculino para esconder seu primeiro nome, assinando suas obras apenas como J. Milde. “Ela era uma mulher fantástica. Não era casada, então, você imagina, em 1929, uma mulher artista ter essa coragem. Se hoje Belo Horizonte ainda é uma cidade provinciana, imagine naquela época”, elogia Marcelina. A professora e artista plástica mineira Arlinda Côrrea, que dá nome à galeria de arte da Fundação Clóvis Salgado, é outro importante nome citado na visita.
MAIS MISTÉRIOS Uma das lendas mais conhecidas é da Loira do Bonfim. A versão mais comum é que um taxista conduziu uma linda mulher do Centro até o Bonfim. Ela pede que ele aguarde alguns minutos antes de entrar no cemitério e o alerta que, caso não retorne, vá até um endereço escrito em um papel pegar o valor da corrida. O taxista foi ao endereço onde estava uma senhora que afirma não ter autorizado ninguém a pegar táxi em seu nome. Ela permite que o homem entre em sua casa e vê, em cima da cristaleira, a foto da moça. Ao comentar que aquela era a moça que procurava, a senhora informou ser impossível, pois ela, sua filha, havia morrido fazia três anos e estava enterrada no Bonfim.
Confira os temas das próximas visitas:
l30 de abril: O cemitério do Bonfim e a literatura: diálogos surpreendesl28 de maio: Imigração e imigrantes: a história da cidade e o cemitériol25 de junho: Signos e símbolos no espaço cemiteriall30 de julho: As ruas da cidade e sua conexão com o Bonfiml28 de agosto: Esporte e esportistas no cemitério do Bonfiml24 de setembro: Religião e religiosidade no espaço cemiteriall22 de outubro: A paisagem cemiterial e a paisagem da cidade: aspectos inexplorados26 de novembro: Personagens e personalidades
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