Biden aproveitou um discurso em Atlanta para fazer uma defesa enfática do acesso ao voto, criticando o Partido Republicano pelo apoio dado a leis estaduais que restringem esse direito Joe Biden parece ter deixado em 2021 a postura conciliatória que vinha imprimindo a seu mandato, com a busca por diálogo com os republicanos para solucionar conflitos. Mais assertivo, o presidente dos Estados Unidos voltou a falar duro nesta terça-feira (11), com ataques diretos ao antecessor Donald Trump e o alerta de que a oposição estaria colocando a democracia do país em perigo.
Biden aproveitou um discurso em Atlanta para fazer uma defesa enfática do acesso ao voto, criticando o Partido Republicano pelo apoio dado a leis estaduais que restringem esse direito. Ele também repetiu que a invasão do Congresso, há um ano, foi estimulada por um "ex-presidente derrotado".
"Para os republicanos da Geórgia, é um problema ter muitas pessoas votando. Os republicanos querem que a vontade dos eleitores seja uma mera sugestão. A batalha pela alma da América ainda não acabou", disse, em tom inflamado. "Tenho tido conversas fechadas com congressistas nos últimos dois meses. Mas cansei de ficar quieto."
Como solução, o democrata defende a aprovação de duas leis que visam ampliar o acesso ao voto, que tramitam no Congresso e podem ser analisadas ainda neste mês. A Lei de Liberdade para Votar prevê padronizar procedimentos como o registro de eleitores, o voto pelo correio, o acesso a locais com as urnas e o controle de doações de campanha - hoje, cada Estado define suas regras.
A outra proposta, apelidada de Lei John Lewis, propõe facilitar o acesso de negros, latinos e outros grupos historicamente excluídos das eleições em alguns Estados dos EUA, especialmente no sul, e prevê punições a governos locais que insistam em medidas restritivas.
"Nos próximos dias, quando esses projetos forem levados a voto, haverá um ponto de virada nessa nação. Nós vamos escolher a democracia em vez da autocracia, a luz em vez da sombra, a justiça em vez da injustiça?", discursou Biden.
"Eu sei onde me posiciono. Não vou ceder, não vou hesitar. Vou defender seu direito ao voto e nossa democracia contra todos os inimigos estrangeiros e domésticos. E a questão é: onde as instituições do Senado vão estar?"
Nos últimos meses, ao menos 19 Estados onde há maioria republicana no Legislativo aprovaram restrições adicionais ao voto. O presidente chamou essa onda de "Jim Crow 2.0", em referência às medidas adotadas após a libertação dos escravos para impedir que negros tivessem direitos básicos e estabelecer que eles vivessem segregados e distantes da política.
As leis de Jim Crow foram adotadas especialmente em Estados do sul, como a Geórgia - não por acaso, onde Biden decidiu fazer o discurso desta terça. Antes da fala, ele e a vice, Kamala Harris, se encontraram com familiares de Martin Luther King (1910-1968) e depositaram flores no túmulo do ativista.
"Pergunto a todos os eleitos na América: 'Você quer estar do lado do dr. [Martin Luther] King ou de George Wallace [ex-governador do Alabama]? Do lado de John Lewis ou de Bull Connor [ex-chefe de polícia]?", questionou, comparando os líderes da luta por direitos civis dos negros e duas autoridades dos anos 1960 que combateram os protestos da época.
Wallace e Connor eram democratas, o que fez com que as citações fossem lidas como uma crítica a membros do partido que se mostram reticentes a embarcar no movimento de Biden.
Em outro sinal de desunião, alguns líderes na campanha pelo acesso ao voto na Geórgia decidiram não comparecer ao evento presidencial. "Não precisamos de mais discursos e platitudes. Precisamos de ação, e imediatamente", disse o reverendo James Woodall, ex-presidente da seção da Geórgia da Naacp (Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor). "Fizemos nossa parte. Lutamos, nos organizamos, votamos. E agora é hora de o presidente e a vice fazerem a deles. Chega de delicadezas."
Uma das ausentes foi a ex-deputada democrata Stacey Abrams, que liderou uma grande ação para registrar eleitores que ajudou Biden a vencer a eleição no Estado em 2020. Questionado sobre a ausência, o presidente disse que conversou com a política pela manhã e que houve um problema de agenda - mas acrescentou que os dois "estão na mesma página e tudo está bem".
As duas leis federais em debate estão barradas no Congresso por resistência dos republicanos. Para romper o impasse, Biden voltou a pressionar por mudanças nas regras do chamado "filibuster", procedimento que permite travar a tramitação de medidas. Por ele, quem for minoria pode pedir um debate no plenário de determinado projeto em análise, adiando indefinidamente a votação, já que a discussão só pode ser encerrada com apoio de 60 dos 100 senadores. Hoje, os democratas ficam reféns da medida, pois têm 50 legisladores - a maioria é garantida pelo voto de desempate da vice-presidente.
"A Constituição não dá poder a uma minoria para bloquear legislações de modo unilateral", discursou Kamala Harris, antes de Biden, nesta terça. Ela também defendeu que as restrições ao voto não podem se tornar algo normal.
Para mudar as regras do "filibuster", porém, Biden vai precisar alcançar um consenso no próprio partido. Os democratas Joe Manchin e Kyrsten Sinema, que representaram o principal obstáculo para a aprovação de um pacote trilionário de investimentos sociais, têm se posicionado contra a proposta.
"Tirar completamente a oportunidade de a minoria participar simplesmente não é o que somos", disse Manchin, ao reafirmar sua posição nesta terça.
Um de seus argumentos é que, no futuro, os democratas eventualmente voltarão a ser minoria em algum momento, e então terão menos poder para barrar projetos dos republicanos. Assim, uma saída seria não encerrar a regra de vez, mas impedir seu uso em casos específicos, como as questões sobre o direito ao voto.
Biden e os democratas querem aprovar mais leis de peso antes das eleições de novembro, quando haverá a renovação do Congresso. Como o partido tem maiorias estreitas na Câmara e no Senado, elas podem ser perdidas mesmo que os republicanos tenham uma vantagem pequena nas urnas.
Com quase um ano de mandato, o presidente vem de meses de dificuldade. Sua aprovação caiu no segundo semestre de 2021, após a caótica retirada das tropas do Afeganistão, e desde então oscila em torno dos 43%. Ele aprovou um pacote de investimentos em infraestrutura, em novembro, mas não conseguiu tirar do papel outro plano, de gastos sociais e ambientais, batizado de BBB (Build Back Better, reconstruir melhor).
A nova estratégia inclui começar 2022 deixando o BBB em segundo plano e dando destaque à defesa do acesso ao voto - e mudando o tom de seus discursos. Em 6 de janeiro, dia em que a invasão do Capitólio completou um ano, Biden já havia usado tom mais agressivo e feito ataques diretos a Trump.
"O ex-presidente criou e espalhou uma rede de mentiras sobre a eleição de 2020. E fez isso porque vê seus interesses como mais importantes do que os interesses da América. Seu ego ferido importa mais para ele do que nossa democracia e Constituição. Ele não consegue aceitar que perdeu", afirmou, na quinta (6).
É como se Biden deixasse de lado as tentativas de buscar conciliação e de fingir que Trump não existe. Embora banido das principais redes sociais, o ex-presidente continua a ser ouvido pela mídia mais conservadora, como a Fox News, e pesquisas recentes mostram que ele se mantém como principal figura do Partido Republicano. As leis de restrição ao direito ao voto se inserem em uma busca por tentar evitar novas derrotas nas urnas.
As medidas adotadas não proíbem as pessoas de votar, mas dificultam o acesso ao mecanismo. A lista de táticas inclui exigir documentos específicos, criar obstáculos no registro de eleitores, restringir o voto por correio e reduzir os locais de votação e seu horário de funcionamento, de modo que as longas filas desencorajem a participação.
Outra prática é o chamado "gerrymandering", um redesenho de distritos eleitorais de modo a favorecer um partido. Nos EUA, de modo geral, cada distrito elege só um candidato. Assim, republicanos buscam alterar o mapa eleitoral para ter vantagens, concentrando eleitores democratas em menos áreas.
Ativistas de direitos humanos e democratas apontam que essas medidas afetam principalmente grupos como negros e latinos, que costumam votar menos em republicanos. "Quando americanos negros e latinos são forçados a esperar horas em filas para votar, quando a votação aos domingos é retirada, nossa democracia é desvalorizada. Essas leis atacam o mau cheiro deixado por práticas racistas e devem ser aprovadas", diz Ben Olinsky, especialista em governança do think tank Center for American Progress.
Já os republicanos e parte dos conservadores defendem que as regras eleitorais continuem a ser definidas pelos Estados. Eles dizem que as leis em debate facilitarão fraudes. "A HR-4 [Lei John Lewis] é uma iniciativa esquerdista desenhada para remover salvaguardas eleitorais e abrir caminho para trapaceiros manipularem as eleições", criticou, em nota, o think tank de direita Heritage Foundation.