Um tuíte da cantora Anitta prometendo fazer doações a Angola devido à crise da pandemia de coronavírus desencadeou manifestações virtuais de jovens que protestam contra o governo local. Anitta no Grammy Latino 2021
Arturo Holmes/Getty Images via AFP
Um tuíte da cantora Anitta prometendo fazer doações a Angola devido à crise da pandemia de covid-19 viralizou no país e desencadeou manifestações virtuais de jovens angolanos que protestam contra o governo local.
Anitta se apresentou em Angola em maio de 2019. Na semana passada, ela escreveu no Twitter: "Ontem estava comentando com algumas pessoas sobre o show que fiz em Angola e me veio na cabeça uma coisa. Como está Angola em relação à pandemia? Alguma forma que posso ajudar? Doações ou algo? Gostaria de retribuir todo o amor que recebi quando fui. Entrem em contato quero ajudar".
O tuíte viralizou em Angola e foi compartilhado por jovens como Baptista Miranda, um dos maiores youtubers angolanos, com mais de 400 mil inscritos na plataforma. Muitos de seus seguidores são brasileiros.
"Obrigado por demonstrar preocupação pelo nosso país. A situação da pandemia aqui aumentou o desemprego, esse governo atual não tem feito nada a favor da população e tem sido cada vez mais complicado para as pessoas que vivem em situação de rua", escreveu Miranda.
"Se você conseguir ajudar, fale com as pessoas certas porque certamente irão aparecer muitos aproveitadores e as ajudas podem não chegar para as pessoas que realmente precisam."
Ao longo dos últimos anos, jovens têm se engajado politicamente contra o governo, sem uma organização centralizada, em plataformas como Facebook, YouTube e mais recentemente no Twitter. Alguns internautas responderam a Anitta com críticas ao governo: "se quiser ajudar, é só denunciar publicamente o partido no poder em Angola" ou "esse governo atual não tem feito nada a favor da população".
O tuíte de Anitta recebeu destaque na imprensa local, especialmente nos portais de informação mais populares de Angola. O Xé Agora Aguenta descreveu como um "belo gesto" a intenção da cantora brasileira, acrescentando que a postagem teve muita repercussão no país.
Mas em muitos comentários dos fãs angolanos de Anitta era comum a preocupação de que os eventuais fundos doados pela cantora fossem desviados por autoridades angolanas.
Anitta respondeu a uma dessas mensagens: "Já estou fazendo diferente, querida. Agora mandarei os materiais já comprados".
Não é muito comum no país grandes figuras da música se posicionarem sobre a situação política ou criticarem abertamente o regime de Angola. Muitos temem sofrer algum tipo de represália por parte do governo.
Em 2012 o relatório anual da Human Right Watch dizia que em Angola "as classes urbanas educadas costumavam usar a internet e as redes sociais como canais para criticar o governo devido às restrições da mídia tradicional".
E muitos críticos do regime angolano insistem que a situação hoje continua a mesma, apesar do atual presidente, João Lourenço, afirmar constantemente que a liberdade de expressão e imprensa são pilares importantes do seu governo que começou em 2017.
"Tendo em conta a dimensão internacional da Anitta, os angolanos viram nela um canal para expressar a sua insatisfação com o governo em Angola", diz Edmilson Ângelo, analista angolano, do Instituto de Estudos de Desenvolvimento do Reino Unido.
Anitta teria contatado a ONG Atos Angola, uma organização não-governamental brasileira que opera no país desde 2011, para fazer chegar as doações.
O que está acontecendo em Angola?
Angola, um país independente de Portugal desde 1975, vive hoje graves problemas políticos, econômicos e sociais.
Com uma população estimada em 33 milhões de habitantes, mais de 18 milhões de pessoas, ou seja, cerca de 54,3% da população, vivem em extrema pobreza - com menos de US$ 1,90 (R$ 10) por dia -, de acordo com dados do World Poverty Clock.
Mas apesar dos números alarmantes, o país africano, rico em recursos naturais, abriga uma elite de milionários africanos, entre eles Isabel dos Santos, filha do ex-presidente de Angola José Eduardo dos Santos, que já foi considerada a mulher mais rica da África pela revista Forbes, com uma riqueza estimada US$ 3,5 bilhões (R$ 19 bilhões).
"Estamos falando de um país que já teve uma economia considerada a segunda maior do continente, mas este crescimento abismal da economia não resultou num desenvolvimento social de Angola", diz Ângelo.
"O desenvolvimento econômico em Angola só serviu para a criação de uma pequena elite que acabou por ser o maior beneficiário desse crescimento histórico, para a tristeza da maioria da população", ele acrescenta.
Angola é um dos maiores produtores de petróleo de África, perdendo só para a Nigéria. O petróleo é a principal fonte de receitas do país. Só em 2019, Angola produziu mais de 1.4 milhões de barris de petróleo por dia.
Mas os recursos provenientes da exploração petrolífera não se refletem na vida de grande parte da população. Críticos do governo costumam apontar a má gestão e a corrupção como elementos que fomentam a desigualdade social no país.
Com uma população jovem de 47%, um dos grandes desafios de Angola hoje é o desemprego juvenil. O país tem altas taxas de desemprego, estimando-se que mais de 52% dos jovens angolanos se encontram desempregados.
Isso tem desencadeado protestos de jovens contra o governo do presidente angolano, João Lourenço, que na sua campanha eleitoral em 2017 prometeu gerar mais 500 mil empregos para os jovens.
Segundo um relatório do Unicef de 2017, Angola integra a lista de países com maior taxa de mortalidade infantil até aos 5 anos. Segundo os dados do documento, em 2016 morreram 83 crianças por cada mil nascimentos, enquanto que no Brasil registaram-se 15 mortes por cada mil nascimentos.
A principal causa de morte em Angola é a malária, uma doença que já foi erradicada na Europa. Mas os desafios da saúde em Angola vão para além das doenças, e estendem-se à falta de condições sanitárias, serviços hospitalares deficientes e pouco investimento público no setor da saúde.
Em dezembro de 2021, os médicos angolanos entraram em greve por quase duas semanas para exigirem melhores condições de trabalho e melhores salários. Um médico em Angola pode ganhar menos de US$ 520 (cerca de R$ 3 mil).
Além disso o país enfrenta problemas crônicos devido à fome. Em setembro de 2021, o Programa Mundial de Alimentação da ONU estimou que mais de 1,3 milhões de pessoas no sul de Angola enfrentaram "fome severa, pois a pior seca em 40 anos deixou campos estéreis, pastagens secas e reservas de alimentos esgotadas".
Em um discurso recente que viralizou nas redes sociais, o presidente João Lourenço disse que "a fome em Angola é relativa", gerando repúdio de organizações da sociedade angolana.
Protestos
Nos últimos quatro anos, Angola tem registado uma grande onda de manifestações antigoverno. São na sua maioria jovens que se reúnem em várias praças da cidade, sobretudo em Luanda, a capital do país, para reivindicarem promessas eleitorais não cumpridas e exigirem melhores condições de vida.
"A população está muito mais ativa do que no passado e quer fazer sentir a sua voz para a resolução dos seus maiores problemas", alega Edmilson.
"Estamos perante um contexto de uma juventude que já não teme a guerra civil que se viveu em Angola e quer que as promessas eleitorais sejam cumpridas", ele acrescenta.
A maioria dos protestos acabam com repressão policial, e em alguns casos com mortos e feridos. Algumas vezes, são os manifestantes que usam violência para para fazer passar a sua mensagem de descontentamento com o partido MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), que governa Angola desde 1975.
Foi o que aconteceu na semana passada durante uma greve dos taxistas em Luanda, em que um grupo de manifestantes botou fogo em um edifício do MPLA e arrancou bandeiras do partido espalhadas pela cidade. As autoridades policiais detiveram 33 pessoas na sequência dos atos.
O presidente angolano condenou na quarta-feira os protestos e disse que eles são parte de um plano para se criar instabilidade em Angola.
Eleições de 2022
Angola realiza eleições de cinco em cinco anos. As últimas eleições, em agosto de 2017, elegeram como presidente João Lourenço, um ex-ministro da Defesa do governo de José Eduardo dos Santos, que foi indicado a posição pelo seu antecessor que governou Angola durante 36 anos.
João Lourenço, que vê hoje a sua popularidade em Angola questionada por causa dos problemas que o país enfrenta, pretende concorrer para um segundo mandato nas eleições marcadas para agosto.
Adalberto da Costa Júnior, líder da UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), o maior partido da oposição, deverá ser o seu principal adversário.
Na visão de Edmilson Ângelo, os últimos protestos em Angola devem servir de alerta para aquele que será o processo eleitoral em Angola.
"Muitos populares olham para 2022 como um ano de mudança, onde vão fazer sentir a sua voz e vontade política. Há uma possibilidade dos protestos radicais continuarem e estes últimos protestos podem ser um sinal daquilo que teremos durante este ano."