Imagens de violência policial marcaram o noticiário brasileiro desta semana, após uma operação que deixou 25 mortos na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, e a morte de um homem na viatura da Polícia Rodoviária Federal (PRF), no Sergipe, sufocado com o gás de bombas dos policiais. Os incidentes ocorreram um ano depois do massacre do Jacarezinho, também no Rio, que terminou em 28 mortes, 24 delas arquivadas, e sete meses depois de uma operação da polícia matar 25 suspeitos do “novo cangaço” em Varginha, no Sul de Minas.
Essas não foram a última vez em que o Brasil assistirá a mortes em massa em ações policiais, para a professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp/UFMG) Ludmila Ribeiro, enquanto se mantiver a conivência e os aplausos de parte da sociedade à letalidade policial.
“A função da polícia é garantir que todos nós tenhamos a vida preservada. Qualquer operação que resulte em morte foi mal-sucedida, porque significa que a polícia utilizou a força em detrimento da inteligência. Tem se tornado mais premente na sociedade brasileira que políticos se apropriem da violência policial para dizer que isso é política pública eficiente, e isso encontra ressonância na sociedade, dado que metade dela acha que bandido bom é bandido morto”, analisa.
Como já havia feito em outras operações, o presidente Jair Bolsonaro (PL), por exemplo, utilizou o Twitter para parabenizar publicamente os policiais por “neutralizarem pelo menos 20 marginais ligados ao narcotráfico em confronto” na Vila Cruzeiro. O discurso em tom de aplauso encontrou eco pelo menos em parte dos comentários. E, embora grande parte dos analistas ouvidos pela imprensa nacional aponte falhas nas operações e, nas redes sociais, parte da população manifeste revolta, não há, no Brasil, movimentos de massa contra a violência policial, como se viu nos EUA em atos do Black Lives Matter, contra a violência policial.
“Falta tradição democrática no Brasil. As pessoas vão para a rua pedir por intervenção militar, que significa matar e perseguir inimigos. O Witzel disse que iria "atirar na cabecinha" e foi eleito com uma quantidade absoluta de votos”, comenta Ribeiro. Ela faz referência ao ex-governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, que defendeu, na campanha de 2018, que policiais atirassem em potenciais criminosos — “mirar na cabecinha e...fogo!”, disse. Ele foi eleito com quase 60% dos votos no segundo turno e, em 2020, afastado por suspeita de irregularidades em sua gestão.
A pesquisadora Ludmila Ribeiro não defende a impunidade para criminosos, e sim que os ritos da sociedade de direito, que prevê julgamento para quem descumpra as leis, seja seguida, algo que, na visão dela, se rompe quando um policial mata os suspeitos em uma operação.
“A polícia se torna todo o sistema de Justiça, porque é ela que diz que o indivíduo é culpado e é ela que executa a sentença, quando dispara o tiro. Ela reverteu completamente sua função, que é garantir a vida, inclusive dos criminosos, porque no Estado de Direito essas pessoas têm direito ao processo penal, a se defenderem, serem condenadas ou não. E as autoridades, que deveriam punir esses policiais, os aplaudem e dizem que fizeram um bom serviço. Se vamos ter policiais executando, então vamos acabar com juízes e promotores”, elabora a professora.
Ela lembra que a letalidade não se restringe a uma só força policial. “Em Varginha, a outra força era a Polícia Rodoviária Federal (PRF), que já tinha dado indícios de letalidade. Por que esse caso de Sergipe, na viatura, chocou mais? Porque tem uma crueldade um pouco maior”, pontua.
Ela avalia que há medidas para minimizar a letalidade policial no curto prazo, além da adoção de câmeras, como foi feito pela Polícia Militar de São Paulo. “Um dos pontos mais importantes é fazer reciclagem com policiais que se envolveram em casos de letalidade. No Chile, por exemplo, a pessoa tem que passar por um novo processo formativo, enquanto aqui é condecorada. Outro ponto é ter treinamento constante, reforçando conteúdos, como preservar as vidas em uma perseguição”, defende.
“A sociedade fora da favela aplaude. E quando nós, da classe média, brancos, nos tornarmos alvo da polícia? Por enquanto, isso está acontecendo nas áreas de favela, com negros, pobres, "indesejáveis". Mas isso pode transbordar, e aí?”, provoca.
No boletim de ocorrência sobre o caso de Genivaldo de Jesus Santos, 38, obtido pela “Folha de S.Paulo”, a equipe da Polícia Rodoviária Federal (PRF) afirmaram que, “por todas as circunstâncias, diante dos delitos de desobediência e resistência, após ter sido empregado legitimamente o uso diferenciado da força, tem-se por ocorrida uma fatalidade, desvinculada da ação policial legítima".
No caso da Vila Cruzeiro, segundo a Polícia Militar, a ação pretendia prender em flagrante mais de 50 traficantes que sairiam em comboio rumo à favela da Rocinha. O plano teria sido frustrado quando uma das equipes à paisana foi descoberta e recebida à tiros na entrada da comunidade.