Dados são das secretarias estaduais de Saúde. Especialistas avaliam que país não adotou estratégias de controle da pandemia e que a situação ainda pode piorar. Seis estados já têm recordes de mortes este mês. Parentes de vítima da Covid-19 fazem enterro no cemitério de Vila Formosa, na Zona Leste de São Paulo, no dia 17 de março.
Carla Carniel/Reuters
O Brasil registrou, do dia 1º até 19 de março, 35.507 mortes pela Covid-19, segundo dados apurados pelo consórcio de veículos de imprensa junto às secretarias de Saúde do país. É o maior número de mortes registradas em um período mensal desde o início da pandemia, mesmo com 12 dias faltando para acabar o mês.
Antes, o maior número de mortes em um mês por Covid havia sido visto em julho de 2020, quando 32.912 pessoas perderam a vida para a doença.
Março também foi o quarto mês consecutivo em que as mortes de um mês superam as do mês anterior (veja gráfico). Ao todo, o Brasil já registrou 290.525 mortes pela Covid-19.
Infográfico mostra que, mesmo 12 dias antes de terminar, março já é o mês mais letal da pandemia no Brasil, com 35.507 mortes pela Covid-19.
Guilherme Luiz Pinheiro/G1
"Apesar de a gente chegar nesse recorde, eu acho que, infelizmente, ainda pode piorar muito", afirma a cardiopediatra Lucia Pellanda, professora de epidemiologia e reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
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"É muito triste falar isso, porque a gente [cientista] está há um ano fazendo tudo o que pode para evitar que isso acontecesse – falando, explicando, dizendo o que precisa. A gente sabe o que precisa fazer para evitar mais mortes", acrescenta Pellanda.
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Nos primeiros 19 dias deste mês, o Brasil teve cinco recordes de mortes em 24h considerando os dados desde o início da pandemia. O primeiro foi no dia 2, com 1.726 vidas perdidas em apenas um dia. O número foi ultrapassado no dia seguinte, quando o país teve 1.840 mortes.
Depois, vieram os recordes de 9 e 10 de março, e, então, o do dia dia 16, quando 2.798 pessoas morreram. Veja no gráfico abaixo:
As médias móveis diárias calculadas pelo consórcio de imprensa estão acima de mil mortes por dia há 58 dias.
Antes de ultrapassar o recorde nacional, março já era o mês com mais mortes por Covid-19 em cinco estados: Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Rondônia e Goiás. Neste último, o recorde foi ultrapassado na quinta (18), quando o estado registrou 1.636 mortes pela doença; o número mais alto anterior era de setembro, quando 1.546 pessoas morreram. Na sexta (19), já eram 1.714 mortes registradas.
A Bahia foi o sexto estado a ver um recorde de mortes em março: do dia 1º até sexta (19), 2.066 vidas haviam sido perdidas para a Covid. O número mais alto anterior era de agosto, quando 1.934 pessoas morreram.
O dado referente às mortes de fevereiro foi calculado subtraindo-se as mortes totais até fevereiro (255.018) do total de mortes até 19 de março (290.525). Os números dos meses anteriores foram determinados com a mesma metodologia, mas considerando o último dia de cada mês (veja mais ao final da reportagem).
Colapso nacional
Equipe de saúde cuida de paciente internada com Covid-19 na UTI do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, no dia 17 de março.
Miguel Schincariol / AFP
Nesta semana, a Fiocruz declarou que o Brasil passa pelo "maior colapso sanitário e hospitalar da história". A fundação divulgou um boletim em que afirma que a pandemia ainda deve piorar em 23 estados e no Distrito Federal.
Apesar de relatos de prefeitos, governadores, secretários e equipes de saúde e avaliações de especialistas de que o colapso está ocorrendo e é nacional, o agora ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello negou esse cenário.
Para a epidemiologista Ethel Maciel, professora titular da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), o governo brasileiro falhou com seus cidadãos.
"O governo brasileiro falhou muito com seus cidadãos. Acho que essa é a frase [com] que eu resumiria o que está acontecendo. Uma mistura de incompetência com descaso, porque no país tem muitas pessoas tecnicamente competentes que certamente teriam prazer de estar ajudando nesse momento o governo", afirma.
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"Mas o governo não quer ser ajudado", diz Maciel. "Pelo contrário, o governo está dificultando o controle quando os estados estão fazendo algumas medidas. Estamos no pior momento do Brasil, a maior crise sanitária de todos os tempos. Nós já colapsamos. É importante as pessoas entenderem isso: o sistema de saúde do país já está colapsado".
A professora afirma que esta é a novidade de agora em relação aos meses anteriores: o colapso simultâneo de todos os estados brasileiros.
"Não tem nem como um estado ajudar o outro. Está todo mundo colapsado. E o governo brasileiro parece não se importa. Acho que isso é que é mais triste: a gente saber que, realmente, estamos à deriva", diz.
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Na semana passada, por exemplo, Santa Catarina teve que encerrar a transferência de pacientes para o Espírito Santo por causa de um "aumento na demanda" na Saúde capixaba. Na quinta-feira (18), o ES começou medidas mais rígidas em todo o estado para combater a pandemia.
"É muito descaso. A gente vem vendo o que está acontecendo, o que vai acontecer. A gente vai ver as pessoas morrendo sem assistência nenhuma, morrendo sufocadas. Isso é muito triste, muito triste. E saber que poderia ter sido diferente – isso que é angustiante", lamenta a professora da Ufes.
Na quinta-feira (18), o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), disse que, se as medidas restritivas adotadas pelo estado não fossem cumpridas por todos os municípios, haveria risco de pessoas morrerem nas ruas. Pelo menos três cidades do sul mineiro seguiam sem cumprir as regras.
Em Goiás, a rede privada de saúde está pedindo leitos de UTI ao SUS. Um médico descreveu a situação do estado como "entre o colapso e o caos". Hospitais privados de São Paulo também já haviam pedido leitos ao sistema público.
"Temos óbitos em números de guerra e um sistema de saúde adaptado para situações de catástrofe", avalia Alexandre Zavascki, infectologista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Ele avalia que há uma negação da situação por parte dos governantes e um "embotamento total" da sociedade. "Agora, cabe muito a cada um – embora não esteja declarado por ninguém, é cada que cuide de si", diz.
Lucia Pellanda, da UFCSPA, reforça que o momento precisa ser de união.
"A gente já viu que o vírus não vai embora sozinho, que ignorar o vírus não adianta", diz. "Não dá mais para evitar essa tragédia, porque já está instalado o colapso, mas a gente pode amenizar muito se todo mundo, agora, realmente, colocasse na cabeça que a gente precisa trabalhar junto", afirma a reitora.
País falhou em adotar medidas de combate
Pessoas andam em uma rua vazia de São Paulo horas antes do toque de recolher por causa da pandemia, no dia 15 de março.
Miguel Schincariol/AFP
No início do mês, especialistas ouvidos pelo G1 listaram motivos pelos quais avaliavam ser necessário decretar um lockdown nacional por, pelo menos, duas semanas.
Na quarta (17), a medida voltou a ser defendida pelo infectologista Julio Croda (assista ao vídeo abaixo), pesquisador da Fiocruz e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
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O lockdown recomendado e pedido pelos especialistas foi feito em Araraquara (SP): a cidade foi fechada por 15 dias e viu queda no número de novos casos. Há dez dias não há pacientes na fila das UTIs, mas a situação ainda não se resolveu: nos primeiros 17 dias de março, mais pessoas morreram de Covid-19 do que no ano passado inteiro.
Na quarta-feira (17), um lockdown também foi decretado em Araçatuba (SP). No estado, prefeitos de 19 cidades pediram ao governador, João Doria (PSDB), um lockdown na Grande São Paulo por 7 dias.
Na capital paulista, o prefeito, Bruno Covas (PSDB), disse que a medida é "inviável" e antecipou feriados para tentar frear o contágio; a medida, que também foi adotada no ano passado, pouco contribuiu para aumentar o isolamento na capital.
A cidade de São Paulo registrou, na quinta (18), a primeira morte de uma pessoa à espera de um leito de UTI; no estado, são mais de 130 pessoas mortas por falta de leito, segundo um levantamento do G1, da TV Globo e da GloboNews.
O cardiologista Marcio Bittencourt, pesquisador do Hospital Universitário (HU) da USP, lembra, entretanto, que a discussão não se limita a fazer ou não um lockdown. Outras medidas de combate à pandemia, algumas delas básicas, também não foram implementadas no país – ou foram de forma insuficiente, diz o médico.
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"Eu não vi, desde março do ano passado, nenhuma propaganda na TV, em mídia social, em imprensa de papel, de medidas de estímulo de testagem mais ampliada. Também não vi uma orientação clara de isolamento de casos – de orientar para a pessoa doente que ela não pode entrar em contato com ninguém, que ela tem que ficar completamente isolada – que é a medida mais importante, a mais básica de todas: quem está infectado não pode circular", reforça.
Ele lembra da quarentena de pessoas que tiveram contato com um caso de Covid-19, que também foi pouco reforçada.
"Toda pessoa que entrou em contato com casos nos últimos 10 a 14 dias não deveria circular, porque pode ser um caso assintomático e pode estar transmitindo. A nossa estratégia de contenção de quarentena de contato é zero", avalia Bittencourt.
Alexandre Zavascki, da UFRGS, concorda.
"É lamentável que a gente não tenha se preparado. Estamos vivendo um ano de pandemia e não fomos aprendendo, incorporando nada. As ações se limitam a ficar abrindo e fechando comércio e outras atividades. Não temos nada de educação para a população, suporte para as pessoas poderem ficar em casa ao menos enquanto estão doentes", pontua.
A distribuição de máscaras é outra lacuna.
"A nossa distribuição de máscara de alta eficácia é baixa, apesar de ter estoque atualmente – a gente investe pouco no uso e no uso adequado de máscara. A gente não distribui, não oferece, não explica a diferença entre as máscaras para ter máscara mais eficaz como PFF2, como N95, e mesmo máscara cirúrgica na comunidade", afirma Bittencourt.
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Profissional de saúde com máscara do tipo PFF2 coloca roupa de proteção individual em meio à pandemia de Covid em um hospital em Atenas, na Grécia, no dia 9 de fevereiro.
Giorgos Moutafis/Reuters
"As pessoas que querem usar não sabem como, não fazem direito e não têm a melhor máscara. E grande parte não quer usar porque a gente não fez uma propaganda – até mesmo uma estratégia de campanha de moda usando máscara, a implementação de máscara de forma irrestrita em meios de comunicação, para convencer as pessoas usarem", afirma Bittencourt.
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"Todas essas medidas nem são de distanciamento físico. A implementação delas foi perto de zero. Se você me perguntar o que a gente está acertando, primeiro eu vou perguntar o que é que a gente está fazendo. A gente está fazendo quase nada", resume o pesquisador.
Para Bittencourt, a única medida certa que o Brasil adotou foi abrir leitos – mas, mesmo assim, isso foi feito com atraso e de forma reativa.
Ele avalia que o país poderia ter acertado no combate à pandemia e adotado várias dessas estratégias. Não fazer isso foi uma decisão política, segundo o médico.
"O SUS é o maior sistema de saúde do mundo. Nenhum país maior do que a gente tem uma coisa desse tamanho. A gente tem capilaridade, agentes comunitários de saúde – são pessoas da região, que conhecem a região. Podia fazer busca ativa de caso no começo, dava para ter feito quarentena de contato", afirma.
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"É uma decisão política. Do ponto de vista técnico, não existe nenhum racional nas escolhas feitas pelo governo federal", diz Bittencourt. "Do ponto de vista epidemiológico, científico, médico ou de saúde pública, não existe nenhum racional para não se implementar o uso de máscara, algum grau de distanciamento físico, testagem ampla, isolamento de caso, quarentena de contato. Não existe", afirma.
Ação individual não é suficiente, mas ajuda
Profissional de saúde trata paciente com Covid em UTI do Hospital São Paulo, em São Paulo, no dia 17 de março.
Amanda Perobelli/Reuters
Marcio Bittencourt ressalta que um problema de saúde pública como a pandemia não pode ser resolvido por ações individuais.
"Nenhuma estratégia de saúde pública deu certo com responsabilização individual até hoje. O problema é comunitário, a forma de contenção é comunitária, na comunidade, pela comunidade", afirma.
Ele compara o uso das máscaras ao da camisinha – para que a população aderisse à iniciativa, foram e ainda são necessárias campanhas todos os anos, por exemplo.
"Para ter um controle efetivo, tem que fazer propaganda de que o preservativo funciona, que ele é confortável, fácil de usar, que é seguro, oferecer e não restringir o acesso. Um preservativo, para todos os fins e efeitos práticos, do ponto de vista de transmissão de doença, tem o mesmo conceito que a máscara", afirma.
Banhistas lotam praia no Leblon, no de Rio de Janeiro, no dia 16 de fevereiro, em meio à pandemia de Covid-19.
Ricardo Moraes/Reuters
Por outro lado, lembra Lucia Pellanda, da UFCSPA, as pessoas que cumprem as medidas de combate à pandemia contribuem, sim, para a situação não piorar.
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"Todas as pessoas que se cuidam, que usam máscara, que mantêm o distanciamento estão salvando vidas. A tragédia poderia até ser maior se não tivesse uma parcela da população se cuidando. Eu acho sempre legal dar a mensagem que tem uma parcela da população que está sendo muito importante também. Acho que muita gente está se sentindo bobo de estar se cuidando porque parece que não tem resultado, mas tem. Podia ainda ser muito pior", diz.
Metodologia
O consórcio de veículos de imprensa começou o levantamento conjunto no início de junho. Por isso, os dados mensais de fevereiro a maio são de levantamentos exclusivos do G1. A fonte de ambos os monitoramentos, entretanto, é a mesma: as secretarias estaduais de Saúde.
Outra observação sobre os dados é que, no dia 28 de julho, o Ministério da Saúde mudou a metodologia de identificação dos casos de Covid e passou a permitir que diagnósticos por imagem (tomografia) fossem notificados. Também ampliou as definições de casos clínicos (aqueles identificados apenas na consulta médica) e incluiu mais possibilidades de testes de Covid.
Desde a alteração, mais de mil casos de Covid-19 foram notificados pelas secretarias estaduais de Saúde ao governo federal sob os novos critérios.
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